sexta-feira, 13 de abril de 2012


O velório da Marquesa Di Fátimo – Capítulo 06

CAPÍTULO 06
CORRINHA: Inicia: ¬– “Tenho um coração, dividido entre a esperança e a razão!...”
HANNAH E BRENDA:
“... Tenho um coração,
Dividido entre a esperança e a razão,
Tenho um coração,
Bem melhor que não tivera!
Esse coração,
Não consegue se conter ao ouvir tua voz.
Pobre coração,
Sempre escravo da ternura...”
LORRAINE: Vai até a cadeira, levanta a Marquesa e, abraçando-a com carinho, murmura a canção já que desconhece a letra e inicia uma dança sendo acompanhada pelas outras. Nesse momento, todas estão de pé, juntas, movidas por uma só coreografia e cantando em voz alta.
TODAS:“... Quem dera ser um peixe,
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor prá te encantar,
Passar a noite em claro,
Dentro de ti,
Um peixe,
Para enfeitar de corais tua cintura,
Fazer silhuetas de amor à luz da lua,
Saciar esta loucura
Dentro de ti..
.”

Enquanto estão cantando vão passando o corpo da Marquesa, entre elas, como se estivessem encenando uma dança final. As lágrimas começam a correr pelos olhos da Corrinha. Brenda tenta disfarçar porque, naquele momento, é ela quem está dançando com a Marquesa. Não agüenta, chora e canta emocionada.
A dança segue encabeçada por Hannah que agarra o corpo da amiga como se fosse uma boneca gigante e, afagando o cabelo da amada Marquesa, murmura a letra da música como se ninasse para ela dormir. Lorraine, chorando e soluçando, vai até a Hannah e a abraça seguida pelas outras amigas.
De repente, estão todas murmurando a letra da música, abraçadas entre si, numa lenta coreografia como se estivessem protegendo-se. Depois, seguem com o corpo da Marquesa até a cadeira, sentam a amiga e continuam abraçadas, chorando e soluçando. Lá fora, a chuva engrossou estupidamente, raios e trovões pipocam no ar, cães latem assustados pelas ruas. No alto da escada, Dona Fifia, a mãe da Marquesa ainda sonolenta, observa em silêncio.

Lágrimas varrem o rosto daquela velha senhora que, na sua ignorância e ingenuidade, sofre com a solidão daquela cena. Sem conseguir entender fica perguntando a Deus o porquê daquilo tudo. Ao mesmo tempo, conscientemente, repreende-se por querer contestar. Sente, no íntimo, que não existe culpa, apenas, nada se explica. Resolve sentar no frio degrau de cimento da escada e aguardar o desfecho daquela situação.
E ali fica respirando e chorando, quase num murmúrio, com medo de atrapalhar a emocionante despedida da sua filha. Depois de certo tempo, a chuva já havia diminuído bastante. Apenas, pequenas gotas insistiam em cair, talvez, para continuar lavando o asfalto.

Da janela do salão dois garotos olhavam, admirados, aquele quadro que se desenrolava diante dos seus olhos: um cadáver de olhos fixos no vazio, sentado com a cabeça pendendo para o lado esquerdo, com os cabelos desgrenhados, cercada pelo lado direito por uma travesti enorme e toda de negro, roncando e babando, acompanhada de um cachorrinho que enlouquecido no pé da mesma, grunhia baixinho.
Do lado contrário outra travesti, loira, com a cabeça largada, pendendo para trás da cadeira, de pernas abertas e um vestido curto que deixava a calçinha vermelha à mostra com a neca saindo do lado. Sentadas no chão do cimento frio estavam mais duas estranhas criaturas com as cabeças deitadas sobre os joelhos da defunta, a dormir.
DONA FIFIA: Entrando na sala e indo até as travestis. – Meninas, acordem! Acabei de fazer um café fresquinho e um cuscuz com ovos para vocês. Vamos, levantem. Temos que nos aprontar para o enterro. Levantam-se em um pulo, assustadas, como que pegas num flagra.
CORRINHA: Hi, meu Deus! Desculpe-me, Dona Fifia. Acho que nos excedemos. 
LORRAINE: Para com isso Sarkozy! Já pra bolsa. – O cão sai correndo para dentro da valise Chanel.
BRENDA: Meu Deus, puxando o vestido pra encobrir os joelhos, eu estou um caco! Vamos tomar café, lavar a cara e preparar o cortejo.
HANNAH: É isso neguinha. Nossa, que bafo hem! Brenda parece o venenoso. Dirigem-se todas para a cozinha enquanto Dona Fifia acende uma nova vela no mesmo prato Colorex. Substitui as varinhas gastas de incenso, vai até a porta, olha para o lado de fora e convida as crianças para entrarem.
MENINO: Mãe! – Gritando em direção a casa vizinha. – Vem agora, os boiolas já acordaram.
D.ANA: Cale a boca Franklin Albuquerque! Dona Fifia, desculpe meu filho, ele não sabe o que fala.
D. FIFIA: Alisando os cachos dourados do pequeno Franklin. Faz muito tempo que convivo com as chacotas do povo para o meu filho ou filha, mas isso agora não importa mais.
Faz-se silencio, novamente, no salão. Começam a chegar os vizinhos: Seu Baiaiá e Dona Hermênia; os gêmeos de dezesseis anos, Diogo e Durval, irmãos do policial Dorgi ¬– que moram nos fundos do salão da Corrinha – a quem, de vez em quando, a finada Marquesa fazia uns agrados nas noites de solidão.

Chegou Dona Neném com seus cinco filhos; o barbeiro Bezaliel que havia deixado, novamente, a igreja Assembléia de Deus por mais uma recaída na cachaça, embriagado, colocou-se sentado ao lado da Marquesa alisando suas mãos e chorando baixinho.
De vez em quando soltava uma pérola do tipo: “Disse alguém: ‘aquelas que usam o traseiro para viverem morrem sentadas’. E tenho dito”. Ninguém entendia o porquê dessa expressão, talvez esse tenha sido um dos segredos que a Marquesa levou para o túmulo.
De repente, ouve-se uma algazarra lá fora. Dois carros param e deles descem Jarita e Shakira ainda montadas. Haviam acabado de sair dos seus shows e vieram, juntamente com um grupo de fashionistas, se despedirem da divertida Marquesa. Em seguida, chegam outros carros e deles descem Diana Fontes e um grupo de bailarinos que, conversando com Dimas Carlos no Bardallos, souberam do velório.

Também chegam Josean Rodrigues, Costa Filho, Lula Belmont, Ricardo Nelson e Civone. Nenhum desses conhecia a Marquesa, mas queriam saber como era um velório de uma travesti. Acharam que seria interessante e resolveram acompanhar, com um olhar artístico, o cortejo. Civone já estava com um poema, em criação, para ler no ato do enterro.
E com o passar das horas o salão foi ficando cada vez mais cheio e apertado. Lá fora, o tempo resolveu escurecer novamente e uma ligeira neblina começou a cair sobre a calçada. Um burburinho tomava conta do velório. Milhares de cheiros se misturavam: cigarros, velas, incensos, perfumes caros e baratos mesclavam-se no ar.

Brenda Bubu foi a primeira a voltar da cozinha, seguida por Corrinha, Hannah e Lorraine com Sarkozy no colo. Dona Fifia, que havia acabado de calçar as sandálias plataformas amarelas na filha Marquesa dirigiu-se para a cozinha. As travestis foram cumprimentando as visitas conhecidas com muitas risadas, algumas até gargalhavam, mas quando lembravam onde se estavam levavam a mão aos lábios, como num ato de censura.
CORRINHA: Bem, já está perto das oito horas e o enterro está marcado para as nove. Vamos então colocar a amiga no ataúde e seguir o cortejo. 
LORRAINE: A pé?
BRENDA: Quer o que? Um Volvo?
HANNAH: Mulé, o cemitério é bem aqui, pertinho, uns duzentos metros, talvez; e é ladeira abaixo.

LORRAINE: Mas, e o meu Laboutin?
HANNAH: Deixa na geladeira que, quando voltarmos, eu faço no coco. Adoro lagostim no coco!
BRENDA: Equina Alice! LABOUTIN é um sapato, um sapato carésimo, coisa de mais pra mil reais.
HANNAH: Com os olhinhos brilhando de cobiça: – Então, deixa que eu cuido. Dê-me aqui que eu guardo.
CORRINHA: NUNCA, ELZA MARIA! NUNCA! Estou vendo o brilho dos seus olhos. Lorraine vamos comigo lá em cima. Você calça algo da Marquesa e eu guardo seu laboutin na chave. – Olhando pra Hannah.
HANNAH: Toda essa frescura por causa desse scarpin de solado vermelho. De repente, do meio da multidão, surge uma voz estridente e afetada.
SHAKIRA: É o meu sonho de consumo!
JARITA: Tentando descer sua micro saia que reluta em subir mais ainda. – Eu uso para lavar o carro.
DIANA FONTES: Essas criaturas são demais, só perdem em criatividade para as novelas de Junior Dalberto!

DIMAS CARLOS: Ele agora tem um portal próprio. É o PORTALJRDALBERTO, vejam no Google.
RICARDO NELSON: Tudo a ver com ele!
CIVONE: Eu soube que, essa semana, ele vai estrear uma novela: “O SEGRÊDO DE MARIA ISABEL”.
RICARDO NELSON: Ele me falou que o título é “ONDE O AZUL É MAIS AZUL”. 
DIANA FONTES: Não importa, qualquer que seja o título é garantia de sucesso novamente. É muita loucura naquela cabeça.
DIMAS CARLOS: Leio tudo dele. Adoro o livro “Pipa voada”. – Acende mais um cigarro sendo seguido por Diana.
RICARDO NELSON: A cena do livro em que o padre é abduzido é tchudo! 
DIANA FONTES: Eu, pessoalmente, adoro as seduções do Ariel!
DIMAS CARLOS: Mulé, e o terreiro de macumba? Tem coisa mais engraçada que o Pai Bebé? Todos concordam com gargalhadas. Enquanto isso, Corrinha está suando em bicas tentando colocar o corpo da Marquesa no caixão sendo ajudada pelos gêmeos Diogo e Durval.

CORRINHA: Desolada: – Eita, e agora?
BRENDA: Que houve?
CORRINHA: O corpo da Marquesa enrijeceu!
HANNAH: Puta que pariu! - Tenta empurrar as pernas da defunta para baixo e, ao fazer isso, o tórax da Marquesa levanta. As pernas endureceram dobradas, com os joelhos colados e as canelas abertas em forma de v, como se permanecessem ainda sentadas na cadeira; o pescoço enrijeceu caído para o lado; os braços, tais quais dois cabos de vassouras, pendiam duros e rentes ao corpo; os olhos, esbugalhados, pareciam bem maiores por causa do delineador que fora aplicado pela Lorraine; na boca destacava-se o batom na cor vermelha berrante.
LORRAINE: Mon Dieu! E agora, que vamos fazzer? Pobre amiga, que situação! Que situação! – Nervosa e agarrada com a bolsa, balançava o cãozinho para todos os lados. As crianças que estão próximas a ela torcem pela queda do cão que fita a todos, amedrontado pelo desequilíbrio da dona. As pessoas que estão assistindo a toda aquela encenação das travestis nervosas, se voltam para uma voz masculina que se sobressai no meio da multidão: – Vamos colocar a Marquesa numa rede e, dessa forma, levar para o cemitério.

TODAS: DORGI!!!
HANNAH: Bofescândalo e ainda inteligente!
DONA FIFIA: Corrinha, você tem alguma rede?
CORRINHA: Tenho uma nova com varandas, nas cores do flamengo e com o rosto do Fenômeno que eu mandei bordar. Amo aquele bofe!
BRENDA: Só você, minha véia?
HANNAH: Que nada! As travas do Brasil todo!
LORRAINE: As européias que o digam.
DONA FIFIA: Deixem de trololó e vá pegar a rede. – Apontando pra Hannah. 
HANNAH: Tudo eu! Tudo eu! – Vai subindo a escada, irritada, em busca da rede.

Mas, uma freada na porta da casa faz todos virarem o pescoço para ver quem está chegando. Dessa vez, é o taxi de Juinão que vem trazendo a mãe Eufrásia e alguns seguidores com alguns baldes cheios de pétalas de rosas vermelhas e amarelas. A macumbeira traz na mão uma longa vela vermelha. Antes de entrar olha para o lado de fora da porta, cumprimenta o vazio e dar uma risada para, em seguida, adentrar ao salão.
Algumas pessoas correm para beijar a mão da velha mãe de santo. Ela vai gentilmente agradecendo e pede para Juinão acender a vela vermelha e colocar ao lado da branca dentro do prato Colorex. Em seguida, dá um passo para frente e grita algumas palavras em Yorubá. Aplaude e todos a seguem nos aplausos. Menos os evangélicos que saem de queixo erguido do salão e vão para o lado de fora da casa esperar a saída do caixão, distribuindo panfletos às pessoas que vão chegando para o velório.
JUINÃO: Quem você viu lá fora, minha mãe?
MÃE EUFRÁSIA: Um bocado delas... Até aquela magra e seca da televisão, a tal da Lacraia juntamente com outra negona, a Vera Verão, e uma dos peitos enormes. Estão rindo, juntamente com a Marquesa, de todo mundo aqui. 
JUINÃO: Como é que pode minha véia? Será que elas se conheciam?
Continua...

CAPÍTULO DEDICADO AOS ARTISTAS POTIGUARES COSTA FILHOCIVONEDIANA FONTESDIMAS CARLOSLULA BELMONTJOSEAN RODRIGUESRICARDO NELSONE AS ESFUZIANTES DIVINA SHAKIRA E JARITA NIGHT AND DAY. QUE MUITO ENRIQUECEM A CULTURA POPULAR DA CIDADE DO NATAL/RN.

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.