O velório da Marquesa Di Fátimo – Capítulo 06
CAPÍTULO 06
CORRINHA: Inicia: ¬– “Tenho um coração, dividido entre a esperança e a razão!...”
HANNAH E BRENDA:
“... Tenho um coração,
Dividido entre a esperança e a razão,
Tenho um coração,
Bem melhor que não tivera!
Esse coração,
Não consegue se conter ao ouvir tua voz.
Pobre coração,
Sempre escravo da ternura...”
“... Tenho um coração,
Dividido entre a esperança e a razão,
Tenho um coração,
Bem melhor que não tivera!
Esse coração,
Não consegue se conter ao ouvir tua voz.
Pobre coração,
Sempre escravo da ternura...”
LORRAINE: Vai até a cadeira, levanta a Marquesa e, abraçando-a com carinho, murmura a canção já que desconhece a letra e inicia uma dança sendo acompanhada pelas outras. Nesse momento, todas estão de pé, juntas, movidas por uma só coreografia e cantando em voz alta.
TODAS:“... Quem dera ser um peixe,
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor prá te encantar,
Passar a noite em claro,
Dentro de ti,
Um peixe,
Para enfeitar de corais tua cintura,
Fazer silhuetas de amor à luz da lua,
Saciar esta loucura
Dentro de ti...”
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor prá te encantar,
Passar a noite em claro,
Dentro de ti,
Um peixe,
Para enfeitar de corais tua cintura,
Fazer silhuetas de amor à luz da lua,
Saciar esta loucura
Dentro de ti...”
Enquanto estão cantando vão passando o corpo da Marquesa, entre elas, como se estivessem encenando uma dança final. As lágrimas começam a correr pelos olhos da Corrinha. Brenda tenta disfarçar porque, naquele momento, é ela quem está dançando com a Marquesa. Não agüenta, chora e canta emocionada.
A dança segue encabeçada por Hannah que agarra o corpo da amiga como se fosse uma boneca gigante e, afagando o cabelo da amada Marquesa, murmura a letra da música como se ninasse para ela dormir. Lorraine, chorando e soluçando, vai até a Hannah e a abraça seguida pelas outras amigas.
De repente, estão todas murmurando a letra da música, abraçadas entre si, numa lenta coreografia como se estivessem protegendo-se. Depois, seguem com o corpo da Marquesa até a cadeira, sentam a amiga e continuam abraçadas, chorando e soluçando. Lá fora, a chuva engrossou estupidamente, raios e trovões pipocam no ar, cães latem assustados pelas ruas. No alto da escada, Dona Fifia, a mãe da Marquesa ainda sonolenta, observa em silêncio.
Lágrimas varrem o rosto daquela velha senhora que, na sua ignorância e ingenuidade, sofre com a solidão daquela cena. Sem conseguir entender fica perguntando a Deus o porquê daquilo tudo. Ao mesmo tempo, conscientemente, repreende-se por querer contestar. Sente, no íntimo, que não existe culpa, apenas, nada se explica. Resolve sentar no frio degrau de cimento da escada e aguardar o desfecho daquela situação.
E ali fica respirando e chorando, quase num murmúrio, com medo de atrapalhar a emocionante despedida da sua filha. Depois de certo tempo, a chuva já havia diminuído bastante. Apenas, pequenas gotas insistiam em cair, talvez, para continuar lavando o asfalto.
Da janela do salão dois garotos olhavam, admirados, aquele quadro que se desenrolava diante dos seus olhos: um cadáver de olhos fixos no vazio, sentado com a cabeça pendendo para o lado esquerdo, com os cabelos desgrenhados, cercada pelo lado direito por uma travesti enorme e toda de negro, roncando e babando, acompanhada de um cachorrinho que enlouquecido no pé da mesma, grunhia baixinho.
Do lado contrário outra travesti, loira, com a cabeça largada, pendendo para trás da cadeira, de pernas abertas e um vestido curto que deixava a calçinha vermelha à mostra com a neca saindo do lado. Sentadas no chão do cimento frio estavam mais duas estranhas criaturas com as cabeças deitadas sobre os joelhos da defunta, a dormir.
DONA FIFIA: Entrando na sala e indo até as travestis. – Meninas, acordem! Acabei de fazer um café fresquinho e um cuscuz com ovos para vocês. Vamos, levantem. Temos que nos aprontar para o enterro. Levantam-se em um pulo, assustadas, como que pegas num flagra.
CORRINHA: Hi, meu Deus! Desculpe-me, Dona Fifia. Acho que nos excedemos.
LORRAINE: Para com isso Sarkozy! Já pra bolsa. – O cão sai correndo para dentro da valise Chanel.
BRENDA: Meu Deus, puxando o vestido pra encobrir os joelhos, eu estou um caco! Vamos tomar café, lavar a cara e preparar o cortejo.
HANNAH: É isso neguinha. Nossa, que bafo hem! Brenda parece o venenoso. Dirigem-se todas para a cozinha enquanto Dona Fifia acende uma nova vela no mesmo prato Colorex. Substitui as varinhas gastas de incenso, vai até a porta, olha para o lado de fora e convida as crianças para entrarem.
MENINO: Mãe! – Gritando em direção a casa vizinha. – Vem agora, os boiolas já acordaram.
D.ANA: Cale a boca Franklin Albuquerque! Dona Fifia, desculpe meu filho, ele não sabe o que fala.
D. FIFIA: Alisando os cachos dourados do pequeno Franklin. Faz muito tempo que convivo com as chacotas do povo para o meu filho ou filha, mas isso agora não importa mais.
Faz-se silencio, novamente, no salão. Começam a chegar os vizinhos: Seu Baiaiá e Dona Hermênia; os gêmeos de dezesseis anos, Diogo e Durval, irmãos do policial Dorgi ¬– que moram nos fundos do salão da Corrinha – a quem, de vez em quando, a finada Marquesa fazia uns agrados nas noites de solidão.
Chegou Dona Neném com seus cinco filhos; o barbeiro Bezaliel que havia deixado, novamente, a igreja Assembléia de Deus por mais uma recaída na cachaça, embriagado, colocou-se sentado ao lado da Marquesa alisando suas mãos e chorando baixinho.
De vez em quando soltava uma pérola do tipo: “Disse alguém: ‘aquelas que usam o traseiro para viverem morrem sentadas’. E tenho dito”. Ninguém entendia o porquê dessa expressão, talvez esse tenha sido um dos segredos que a Marquesa levou para o túmulo.
De repente, ouve-se uma algazarra lá fora. Dois carros param e deles descem Jarita e Shakira ainda montadas. Haviam acabado de sair dos seus shows e vieram, juntamente com um grupo de fashionistas, se despedirem da divertida Marquesa. Em seguida, chegam outros carros e deles descem Diana Fontes e um grupo de bailarinos que, conversando com Dimas Carlos no Bardallos, souberam do velório.
Também chegam Josean Rodrigues, Costa Filho, Lula Belmont, Ricardo Nelson e Civone. Nenhum desses conhecia a Marquesa, mas queriam saber como era um velório de uma travesti. Acharam que seria interessante e resolveram acompanhar, com um olhar artístico, o cortejo. Civone já estava com um poema, em criação, para ler no ato do enterro.
E com o passar das horas o salão foi ficando cada vez mais cheio e apertado. Lá fora, o tempo resolveu escurecer novamente e uma ligeira neblina começou a cair sobre a calçada. Um burburinho tomava conta do velório. Milhares de cheiros se misturavam: cigarros, velas, incensos, perfumes caros e baratos mesclavam-se no ar.
Brenda Bubu foi a primeira a voltar da cozinha, seguida por Corrinha, Hannah e Lorraine com Sarkozy no colo. Dona Fifia, que havia acabado de calçar as sandálias plataformas amarelas na filha Marquesa dirigiu-se para a cozinha. As travestis foram cumprimentando as visitas conhecidas com muitas risadas, algumas até gargalhavam, mas quando lembravam onde se estavam levavam a mão aos lábios, como num ato de censura.
CORRINHA: Bem, já está perto das oito horas e o enterro está marcado para as nove. Vamos então colocar a amiga no ataúde e seguir o cortejo.
LORRAINE: A pé?
BRENDA: Quer o que? Um Volvo?
HANNAH: Mulé, o cemitério é bem aqui, pertinho, uns duzentos metros, talvez; e é ladeira abaixo.
LORRAINE: Mas, e o meu Laboutin?
HANNAH: Deixa na geladeira que, quando voltarmos, eu faço no coco. Adoro lagostim no coco!
BRENDA: Equina Alice! LABOUTIN é um sapato, um sapato carésimo, coisa de mais pra mil reais.
HANNAH: Com os olhinhos brilhando de cobiça: – Então, deixa que eu cuido. Dê-me aqui que eu guardo.
CORRINHA: NUNCA, ELZA MARIA! NUNCA! Estou vendo o brilho dos seus olhos. Lorraine vamos comigo lá em cima. Você calça algo da Marquesa e eu guardo seu laboutin na chave. – Olhando pra Hannah.
HANNAH: Toda essa frescura por causa desse scarpin de solado vermelho. De repente, do meio da multidão, surge uma voz estridente e afetada.
SHAKIRA: É o meu sonho de consumo!
JARITA: Tentando descer sua micro saia que reluta em subir mais ainda. – Eu uso para lavar o carro.
DIANA FONTES: Essas criaturas são demais, só perdem em criatividade para as novelas de Junior Dalberto!
DIMAS CARLOS: Ele agora tem um portal próprio. É o PORTALJRDALBERTO, vejam no Google.
RICARDO NELSON: Tudo a ver com ele!
CIVONE: Eu soube que, essa semana, ele vai estrear uma novela: “O SEGRÊDO DE MARIA ISABEL”.
RICARDO NELSON: Ele me falou que o título é “ONDE O AZUL É MAIS AZUL”.
DIANA FONTES: Não importa, qualquer que seja o título é garantia de sucesso novamente. É muita loucura naquela cabeça.
DIMAS CARLOS: Leio tudo dele. Adoro o livro “Pipa voada”. – Acende mais um cigarro sendo seguido por Diana.
RICARDO NELSON: A cena do livro em que o padre é abduzido é tchudo!
DIANA FONTES: Eu, pessoalmente, adoro as seduções do Ariel!
DIMAS CARLOS: Mulé, e o terreiro de macumba? Tem coisa mais engraçada que o Pai Bebé? Todos concordam com gargalhadas. Enquanto isso, Corrinha está suando em bicas tentando colocar o corpo da Marquesa no caixão sendo ajudada pelos gêmeos Diogo e Durval.
CORRINHA: Desolada: – Eita, e agora?
BRENDA: Que houve?
CORRINHA: O corpo da Marquesa enrijeceu!
HANNAH: Puta que pariu! - Tenta empurrar as pernas da defunta para baixo e, ao fazer isso, o tórax da Marquesa levanta. As pernas endureceram dobradas, com os joelhos colados e as canelas abertas em forma de v, como se permanecessem ainda sentadas na cadeira; o pescoço enrijeceu caído para o lado; os braços, tais quais dois cabos de vassouras, pendiam duros e rentes ao corpo; os olhos, esbugalhados, pareciam bem maiores por causa do delineador que fora aplicado pela Lorraine; na boca destacava-se o batom na cor vermelha berrante.
LORRAINE: Mon Dieu! E agora, que vamos fazzer? Pobre amiga, que situação! Que situação! – Nervosa e agarrada com a bolsa, balançava o cãozinho para todos os lados. As crianças que estão próximas a ela torcem pela queda do cão que fita a todos, amedrontado pelo desequilíbrio da dona. As pessoas que estão assistindo a toda aquela encenação das travestis nervosas, se voltam para uma voz masculina que se sobressai no meio da multidão: – Vamos colocar a Marquesa numa rede e, dessa forma, levar para o cemitério.
TODAS: DORGI!!!
HANNAH: Bofescândalo e ainda inteligente!
DONA FIFIA: Corrinha, você tem alguma rede?
CORRINHA: Tenho uma nova com varandas, nas cores do flamengo e com o rosto do Fenômeno que eu mandei bordar. Amo aquele bofe!
BRENDA: Só você, minha véia?
HANNAH: Que nada! As travas do Brasil todo!
LORRAINE: As européias que o digam.
DONA FIFIA: Deixem de trololó e vá pegar a rede. – Apontando pra Hannah.
HANNAH: Tudo eu! Tudo eu! – Vai subindo a escada, irritada, em busca da rede.
Mas, uma freada na porta da casa faz todos virarem o pescoço para ver quem está chegando. Dessa vez, é o taxi de Juinão que vem trazendo a mãe Eufrásia e alguns seguidores com alguns baldes cheios de pétalas de rosas vermelhas e amarelas. A macumbeira traz na mão uma longa vela vermelha. Antes de entrar olha para o lado de fora da porta, cumprimenta o vazio e dar uma risada para, em seguida, adentrar ao salão.
Algumas pessoas correm para beijar a mão da velha mãe de santo. Ela vai gentilmente agradecendo e pede para Juinão acender a vela vermelha e colocar ao lado da branca dentro do prato Colorex. Em seguida, dá um passo para frente e grita algumas palavras em Yorubá. Aplaude e todos a seguem nos aplausos. Menos os evangélicos que saem de queixo erguido do salão e vão para o lado de fora da casa esperar a saída do caixão, distribuindo panfletos às pessoas que vão chegando para o velório.
JUINÃO: Quem você viu lá fora, minha mãe?
MÃE EUFRÁSIA: Um bocado delas... Até aquela magra e seca da televisão, a tal da Lacraia juntamente com outra negona, a Vera Verão, e uma dos peitos enormes. Estão rindo, juntamente com a Marquesa, de todo mundo aqui.
JUINÃO: Como é que pode minha véia? Será que elas se conheciam?
Continua...
CAPÍTULO DEDICADO AOS ARTISTAS POTIGUARES COSTA FILHO, CIVONE, DIANA FONTES, DIMAS CARLOS, LULA BELMONT, JOSEAN RODRIGUES, RICARDO NELSONE AS ESFUZIANTES DIVINA SHAKIRA E JARITA NIGHT AND DAY. QUE MUITO ENRIQUECEM A CULTURA POPULAR DA CIDADE DO NATAL/RN.
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