O Velório da Marquesa Di Fátimo

                                  O VELÓRIO DA MARQUESA DI FÁTIMO
                                                                         De Junior Dalberto



                                                      


Início
Naquela fria noite de sábado, não se via nenhuma prostituta ou travesti procurando clientes embaixo dos postes de iluminação da Avenida Roberto Freire, em Ponta Negra. A Avenida se encontrava totalmente alagada pela chuva, parecendo mais a noite do juízo final, com tamanho dilúvio sem o velho Noé e sua arca para salvar a cidade do sol. No estacionamento do Shopping Cidade Jardim, um táxi parado, com um motorista bastante irritado e uma inusitada passageira discutiam em altos brados, sem se incomodarem com o forte barulho da chuva, que caía sobre o teto do pálio branco. O taxímetro alheio à conversa tarifava sistematicamente a corrida.
JUINÃO: Só mais cinco minutos e nem mais um segundo, se esse viado não aparecer, largo você aqui na chuva e vou à praça. - Enquanto falava, acariciava a gorda barriga que chegava quase até o volante do automóvel. Apesar de não ter ainda trinta anos e possuir um rosto com gordas bochechas, ele aparentava bem mais idade. Talvez pelo excesso de peso e a calvície prematura.
BRENDA BUBU: Para. Já está me dando nos nervos! Que besteira é essa agora? Fique peixe, ela já está vindo, foi só ali secar o cabelo. A chuva acabou com a chapinha dela. Eu não sei por que você reclama tanto se vai receber a grana da corrida. Não está ligado essa merda de taxímetro?

JUINÃO: Nem sempre vocês me pagam, a marquesa morreu e deixou um prego de cem paus.
BRENDA BUBU: Pelo que sei, ela lhe pagava de outra forma, sempre baixava a vovó. - Termina a frase dando uma risada.
JUINÃO: Mentira daquela bichona, ela nunca fez boquete em mim, se ela não estivesse morta você ia ver só! Pra vocês todo mundo é boiola. Puta que pariu! Que porra para demorar, já passou quase meia hora e onde é que ela foi secar o cabelo? Afinal, neste shopping não tem nada aberto a esta hora da noite.
BRENDA BUBU: Hãããnn- (Sarcástica) Claro que é no banheiro, gato. Sabe aquele secador de mãos que é fixado na parede? Pois é, a gente fica embaixo deles e seca o cabelão todo, jogando para um lado e para o outro, feito a Joelma do Calypso, depois sai de lá super gata.
JUINÃO: Sei não visse, sai prá lá. Olha, lá vem a criatura, abre a porta para vocês ficarem juntas.
BRENDA BUBU: Deixe-a ir na frente com você, aqui a trans vai me amassar todinha.
JUINÃO: Nunca, eu conheço os truques de vocês, não vem não hoje vão me pagar com grana viva, estou precisando.
HANNAH: Oi, tudo bom? Demorei? Por que não vou na frente? – Fazendo biquinho com os lábios pintados com um vermelho intenso, insinuando-se para abrir a porta dianteira do carona, enquanto Juinão segurava a trava por dentro, impedindo-a.
BRENDA BUBU: O bofe hoje quer o aqüé, grana nêguinha.
HANNAH: Oh!...que peninha, já estava até me preparando para baixar a vovó.
BRENDA BUBU: Truqueira e ainda dizem que tu és Alice.
HANNAH: Alice é meu edi.. Hei bofe! Nem um bolinho?
JUINÃO: Para com a sacanagem e vamos embora. (seguem em direção a saída do estacionamento) E peguem três paus para pagar o estacionamento. Hannah de Belém faz um muxoxo, fecha a porta do carro, senta-se ao lado da amiga, abre a bolsa e tira cinco reais passando em seguida para Juinão. Toma uó! - Com no máximo vinte e quatro anos, se não fosse o acentuado nó na garganta seria sempre confundida com uma mulher, com mais de um metro e setenta e cinco, acentuado pelos altos saltos, com um corpo todo produzido, como ela faz questão de deixar claro, 500 mililitros de silicone em cada seio, hormônios com aplicações mensais afinaram a voz, uma cintura escultural, cabelos alisados e negros que descem em comprimento até as nádegas arredondadas pela aplicação de silicone, pernas torneadas, belos olhos castanhos e amendoados, que deixam uma ligeira aparência oriental típica de quem é natural da cidade de Belém do Pará, região amazônica do país. Assim como Hannah de Belém, Brenda Bubu também trabalha de dia no salão de beleza da Corrinha, uma madura travesti que mora no próprio salão, no bairro de Nova Descoberta, e que cedeu o espaço para o velório da amiga Marquesa Di Fatimo, destino de todos naquela noite. Às vezes, como naquela ocasião, quando estão sem dinheiro ou só pra curtir, jogam-se no calçadão da Roberto Freire para se prostituir.

Brenda Bubu é carioca de Bangu. Chegou ainda criança com a família, em Natal. O pai, senhor Mauricio, herdou uma vila com dez casinhas, no bairro do Bom Pastor, deixadas por dona Marina avó da Brenda, quando faleceu. Ele largou o emprego de apontador de jogo de bicho, em Nilópolis, bairro do Rio de Janeiro, famoso pela escola de samba “Beija flor de Nilópolis” e veio embora com a mulher Luzinete e Mauricio Junior, o único filho do casal. Na época, estava com dois anos de idade. Após três meses em Natal, o pai da Brenda foi assassinado na porta de uma das casas da vila, quando tentava acabar com uma briga entre um casal de moradores. Terminou levando uma facada no ombro, desferida por um dos contendores e morreu, ali mesmo, estrebuchando no cimento com a mulher puxando os próprios cabelos em desespero e o filho chorando abraçado às pernas do corpo sem vida. Enquanto isso, no rádio da casa vizinha, o rei Roberto Carlos cantava que queria ter um milhão de amigos. O assassino conseguiu fugir, mas foi pego no dia seguinte em Tangará, um município vizinho, estava bêbado e fazia arruaças pela cidadezinha. Mauricinho Junior, como era chamado a Brenda quando criança, sempre foi um menino diferente, que vivia pelos cantos agarrado à saia da mãe. Não gostava de brincar com nenhuma outra criança, cresceu solitário. Sua mãe o levou por diversas vezes às igrejas evangélicas, católicas carismáticas, mas o menino pouco falava com as pessoas, ficava sempre desenhando vestidos e mais vestidos em qualquer pedaço de papel que encontrava, todavia sempre com um olhar tristonho e pouco sorria. Alguém aconselhou Luzinete a levar o Mauricinho Junior ao terreiro de mãe Eufrásia de Aridã, no bairro da Cidade da Esperança. Ao chegar, Mauricinho ficou encantado com o lugar. Havia um peji de canto, além de várias imagens de divindades da umbanda.


Ele ficou fascinado pelas imagens de pombas giras e pelas dezenas de bonecas de pano penduradas nas ripas do teto por cordas pelo pescoço, um forte cheiro de incenso e várias velas de diversas cores enchiam o ambiente de fumaça, um sapo seco com a boca costurada estava dentro de um prato vermelho com uma vela pequena preta acesa sobre várias fotografias 3x4 de homens e mulheres. No chão do peji encontrava-se uma caveira que lembrava um crânio humano de filmes de bruxarias dentro de uma bacia de alumínio cercado de dinheiro em notas e moedas e com uma vela acesa que deixava escorrer cera quente por entre os orifícios onde um dia existiram olhos, nariz e boca, parecia estar rindo daquela estranha situação. Ao lado do altar das imagens dos Orixás, mais conhecido como peji pelos iniciados e freqüentadores do lugar, estava sentada uma gordinha senhora com um olhar simpático, trajava uma tradicional vestimenta branca de baiana e colares multicoloridos conhecidos por guias. Já na sua frente, sobre um tamborete de madeira, uma bandeja de madeira trancada por cipós fininhos e coberta por uma pequena toalha de renda branquinha e cheia de búzios, estava a famosa mãe de santo fumando um cachimbo de madeira pendurado nos lábios, dando a impressão que cairia da boca a qualquer movimento. Ela dirigiu o olhar para o rapaz, franziu a testa, jogou a fumaça do cachimbo no rosto de Mauricinho Junior que tossiu. A velha bruxa deu uma gargalhada e disse que aquilo não tinha jeito, se quisesse ela faria um trabalho pra soltar a pomba gira presa no Erê.
Dona Luzinete fuzilou a mãe Eufrásia com um raivoso olhar, pegou Mauricinho Junior pelo braço, levantou o queixo e saiu dali toda empertigada. Mauricinho ainda olhou para trás, quando estava passando pela porta da rua do terreiro e piscou o olho pra macumbeira. Anos depois decidiu abrir a boca e conversar com a mãe sobre suas tendências femininas. Sempre foi precoce nos estudos, lia tudo que se relacionava com o seu comportamento, descobriu os hormônios juntamente com a loucura por Madonna, a mãe resignou-se e o apoiou em tudo, adorava o filho e fez dele a filha dos seus sonhos. Vendeu duas casas da vila para a transformação do Mauricinho em Brenda Bubu.
Aos dezoito anos tiveram que mudar de bairro, por causa de uma vizinha enciumada que queria matar a Brenda, que já estava famosa por seduzir os machos da redondeza. Com um rosto feminino, olhar lânguido, um cabelo super bem cuidado, tão bonito e cacheado em cascatas, que parecia um modelo fotográfico. Sua feminilidade e seu corpo escultural esculpido pelas mãos de um famoso cirurgião plástico potiguar, com o dinheiro da venda das casas, causava rebuliço em qualquer ambiente que chegava. Diferente das amigas travestis, Brenda tinha um sonho, cursar uma faculdade de artes, pois adora a História da Arte, sonhava em lecionar nessa área. Pela manhã, faz cursinho pré-vestibular e não se incomoda nem um pouco com o buillying que sofre diariamente na sala de aula, pois acredita que esse é o preço por ser diferente. Feliz, ela leva a vida totalmente odara como sempre diz. (A chuva estava diminuindo quando passaram em frente ao quartel do exército do bairro de Nova Descoberta).
BRENDA BUBU: Olha Gata, o paraíso é aqui. – Apontando para a guarita do quartel, onde um soldado armado monta guarda do lugar. Os três caem numa gargalhada e o carro passa bruscamente sobre um pequeno buraco da avenida jogando Brenda sobre Hannah.
HANNAH: Cuidado mona! Olha o meu silicone. Se estourar, te mato hein garoto (apontando o indicador para o motorista).
JUINÃO: Estourar que nada, o que tu leva de arrocho nesses peitos já era para ter murchado as bolas.
HANNAH: Que grosso, parece uma cacura nem sei por que te amo. - tenta acariciar o motorista.
JUINÃO: VAI TE LASCAR, E TIRA A MÃO DE MIM E CACURA É SEU ANEL DE COURO. (Gritando)
BRENDA: Mona tu és Alice mesmo. Já te falei que cacura é bicha velha, não bofe uó. Pega esse aqué aqui e completa a corrida, estamos quase chegando. (passa um dinheiro pra colega) No meio da rua um carro está parado impedindo a travessia. Suas luzes estão acesas inclusive uma multicolor no teto que gira enlouquecida.

JUINÃO: Que porra é essa na frente? Acho que é uma viatura da polícia.
HANNAH: Alibãs, merda, alguém tá de cima?
BRENDA: Tô com um fuminho aquendado na calcinha.
JUINÃO: Caralho, essas travecas sempre aprontam.
BRENDA: Cala a boca seu barriga. Tenho um plano. Hannah quando o policial botar à cara na janela a gente faz super gêmeas.
HANNAH: Fechou mona. (Elevam ambas as palmas abertas da mão direita acima do rosto e batem como um cumprimento). O táxi do Juinão para diante da viatura da policia militar, a chuva agora está bem fina quase parando, numa casa da rua do lado da viatura um grupo de rapazes observa a ação da policia. Dois policias permanecem escorados do lado de fora da viatura, enquanto um mais jovem sai de dentro dela e dirige-se até o táxi, que naquele momento já se encontra com a lâmpada interna acesa, esperando a abordagem. E também com os vidros das janelas do motorista e da parte traseira abaixados.
POLICIAL: Boa noite, documentos, por favor!
HANNAH: Super gêmeas!!!- Fala
BRENDA: Ativar!! – Completa e em seguida as duas beijam-se com bastante lascívia, agarrando-se, esfregando-se com bastante malícia, deixando o motorista e o Policial boquiabertos.
JUINÃO: Passando os documentos para o policial e olhando pra trás, não consegue prender o riso, quando volta o olhar para o policial reconhece o amigo Dorgival, então fala: Galera para de quebrar a louça é o Dorgi.
As duas travestis param de imediato o ensaiado amasso e falam ao mesmo tempo- DORGI!! Diante delas, um rapaz forte, cabelos bem curtos louros, olhos verdes e de corpo atlético, com um uniforme de policial tão colado no corpo que dá pra ver o desenho dos músculos sobre o tecido. A calça deixa-o com um volume tão acentuado que parece que o seu sexo vai saltar na cara de quem estiver próximo, as nádegas parecem duas bolas de futebol unidas.
POLICIAL DORGI: Falem baixo, meus colegas podem ouvir.
HANNAH: Gostoso, bofescândalo, tesouro da mamãe, você ta em falta comigo, meu galego lindo.
BRENDA: Calma gente, o que está acontecendo, Dorgi?!

CAPÍTULO 02
POLICIAL DORGI: Estamos atrás da balinha, ela roubou um gringo velho, deu um boa noite cinderela na biba Irene e ainda deixou a prova do crime. Um saquinho cheio de balas de hortelã!
JUINÃO: A balinha é fodinha, sempre engraçadinha.
HANNAH: Ela leva a sério a história de ter nascido no dia de Cosme e Damião e está sempre distribuindo balas para os clientes e para as colegas também. É um doce, a boneca.
BRENDA: Coisa de baunilha, dessas bibinhas novinhas em inicio de carreira.
POLICIAL DORGI: Alguém sabe onde ela mora?

BRENDA: Acho que no Passo da Pátria, no centro da cidade.
HANNAH: Eu penso que ela está morando em Passagem de Areia, lá para as bandas de Parnamirim.
JUINÃO: Quinta feira passada deixei a ninfeta na pracinha do Golandim.
POLICIAL DORGI: Assim não dá! Vocês estão me sacaneando... Passa! Vão embora! Boa sorte.
BRENDA: Lentamente. - Sabia que a marquesa virou purpurina?
DORGI: Estou sabendo, amanhã apareço lá na Corrinha.
HANNAH: Tchau amor! O soldado volta-se caminhando para a viatura.
BRENDA: Já peguei!
HANNAH: E então, foi legal?
BRENDA: Panqueca, totalmente panqueca.
JUINÃO: Panqueca? O que é isso?
HANNAH: Deitou virou, querido. Mas acho que ele pode ser versátil.
JUINÃO: Eu hein, todo mundo para vocês é boiola, oh classe nojenta!
HANNAH: Mesmo assim eu queria, casava e lhe dava dois filhos. Cai na gargalhada.
BRENDA: Cuidado mona, se apaixonar por bofe de equé, se lasca. É o tipo de mutante que deixa qualquer mona de equé na pior.
HANNAH: Brenda Bubu Querida, se me apaixonar por um bofe equêzero desse é ficar na pior, imagine o que é estar bem. Pôônnrraa. Todos caem na gargalhada. O táxi vai subindo, lentamente, a ladeira em direção ao centro de Nova Descoberta. Após uns minutos, para diante de uma casa de primeiro andar, em uma esquina. A residência é pintada com uma cor amarelo berrante e tem uma placa dividindo os andares da fachada, onde está escrito: “salão de beleza da Corrinha”, com um desenho de uma loira com uma enorme cabeleira esvoaçando aos ventos, cercada de uns corvos negros de bicos abertos, voando sobre a cabeça loira. Um batom vermelho sobressaia apenas no lábio superior, alguém tascou alguma coisa no lábio inferior, que arrancou a cor juntamente com o lábio, enorme cílios negros esbugalharam o olhar da modelo, como se ela estivesse apavorada, parecendo propaganda de filme de terror dos anos cinqüenta. A larga porta da entrada do salão e a janela estavam abertas, apesar de tão avançada hora da noite. As luzes acesas, um caixão de defuntos de madeira vagabunda encontrava-se sobre uns andaimes de metal no centro da sala, cercado por duas coroas de flores, uma de metal e flores artificiais e outra de belíssimas rosas vermelhas naturais. Na primeira, havia uma faixa pequena onde estava escrito a frase: “Saudades, vá com Deus Mário de Fátimo. Te amo eternamente. Da sua mãe Fifia”; e na coroa natural estava escrito: “Adeus amiga, saudades da sua Carola de Milano”. Uma vela comprida estava ardendo sobre um prato de vidro verde colorex, ao lado de um crucifixo de uns quinze centímetros, colocado na bancada do salão, juntamente com diversos vidros de xampus e uma lata de henê maru. Na parede ao lado do único lavatório de cabelos, um cartaz antigo anunciava um show de 1999, da cantora Gretchen, na antiga Boate Vogue, do Alecrim. A artista sorria naquele estranho ambiente, dando as boas vindas para àquelas esfuziantes visitantes. Diante da Gretchen em outra parede, uma foto emoldurada do jogador Ronaldinho vestindo a camisa da seleção brasileira com aquele belo sorriso e olhar cativante seduzia o ambiente, era o xodó das travecas do salão. O ambiente estava soturnamente vazio. Debaixo do caixão, na altura da cabeça da defunta, algumas varetas de incenso queimam enfiadas estrategicamente em um pedaço de sabonete, dentro de um pires verde colorex, perfumando o ambiente, com um enjoativa fragrância de patchouli.
JUINÃO: Aproximando-se do caixão - Porra o viado esticou, parece bem maior.
HANNAH: Normal, isso acontece com todo mundo. Ela está linda!
BRENDA: Parece um anjo dormindo.
JUINÃO: Pronto, agora torou dentro... Fresco depois que morre vira anjo, é?
HANNAH: Lá em Belém do Pará, de onde venho, biba novinha assassinada vira anjo do Círio de Nazaré. Tem até um andor só pra elas na procissão...
BRENDA: Para de chocar sua louca, o bofe vai levar a sério. É brincadeira dessa ebó, viu querido.
JUINÃO: Chateado – Ora, vão tomar dentro que eu vou é trabalhar! Amanhã, passo aqui na hora do enterro.
HANNAH: Olha lá, hein SCHREK! Vê se não fura, promessa é dívida; e mais na frente da Marquesa, ela pode te cobrar e puxar teu pé quando você dormir. – Risos.
JUINÃO: Sai pra lá! Persigna-se. Claro que venho... Até amanhã!
BRENDA: Que estranho, não tem ninguém – Olha em volta, vai até a velha escada que leva ao andar superior da casa, para e fica pensativa.

HANNAH: Será que deu merda e os alibãns levaram todo mundo? Enquanto fala, vai andando pelo salão, mexe nos esmaltes, abre um vidro de xampu leva ao nariz, cheira, aprova, olha pra Brenda e vai colocando na bolsa e deixa cair com o susto do grito que ouve da parte superior da escada.
CORRINHA: Larga o esmalte, truqueira, nem com a morte da outra você deixa de elzar, piranha. Larga já o meu esmalte!
HANNAH: Menina,desculpa, é a força do hábito, coisa de quem trabalha em salão... Sabe como é, leva pra casa e devolve no dia seguinte.
CORRINHA: Isso para mim é roubo mesmo. Passa para cá, boneca, vai! Toma o vidro de esmalte da mão da Hannah e o coloca sobre a bancada, ao lado da vela acesa.
BRENDA: Você foi muito legal deixando trazer o corpo da amiga para o seu salão...
CORRINHA: A mãe da Marquesa, Dona Fifia, está lá em cima descansando, chegou ainda agora de Regomoleiro, está muito abalada, dei um Diazepam para ela dormir até a hora do enterro.
HANNAH: Fez bem, que afofi é esse, estão sentindo? Girando a cabeça.
CORRINHA: Incenso de patchouli.
BRENDA: Mas não veio mais ninguém?
CORRINHA: Por enquanto só vocês, todo mundo trabalha à noite, né?! Acho que amanhã logo cedo estará todo mundo aqui.
BRENDA: Também com essa chuva, fica difícil. Meninas, vocês não acham que a marquesa merece uma maquiagem, está tão pálida, ela adorava um batom, sombra, um lápis, essas coisas super necessárias pra qualquer boneca.
HANNAH: Corrinha tem Otim? Pode ser cana, vodka, qualquer coisa? Estou com uma vontade de beber da porra.
CORRINHA: Tem uma garrafa de cana na cozinha, vai lá atrás pegar, pegue também uns copos Nadir Figueiredo que estão em cima da geladeira, cuidado pra não quebrar, aproveite e passe uma água, aqui está cheio de baratas.
BRENDA: Lá em casa tem é escorpião, aff morro de medo!
HANNAH: Morar em Parnamirim, só dá nisso...
BRENDA: Você não pode falar mona, quem mora depois da ponte é refúgio.
HANNAH: Redinha Nova querida é chique. A Carola de Milano tem casa lá.
CORRINHA: Ela mandou uma coroa linda. Vai até as flores e cheira. Empurrando levemente a Brenda em direção as flores.
BRENDA: - Dirigindo-se á Hannah - Aborto de freira, a Carola ta podendo, a casa dela é realmente na Redinha nova. Você é bagaceira e se esconde na favela da áfrica que é outro continente.
HANNAH: Mulé, você adora me derrubar, isso tudo é mágoa de cabocla, inveja pura. Quando está lascada, toda reiada, é a mim que vem chorar suas lacrimas.
BRENDA: É lagrima analfabeta, acorda Alice, deixe de enrolar e vai pegar a cana, vamos beber a amiga. – Dirigindo-se para Corrinha, abraça a amiga e pergunta: Corrinha minha linda, porque deixasse a rua, tu ainda dá pra ganhar uma grana dos gringos e eu soube que tu tem malão.
CORRINHA: Envergonhada. – Não dá mais pra mim. O calçadão é para as novinhas que nem vocês. Já virei mona Irene. Passei dos cinqüenta e além do mais tenho uma profissão, você sabe que sou cabeleireira e patroa de vocês...
HANNAH: Entregando os copos – E nosso anjo da guarda Dá um beijo no rosto da Corrinha. Mas que tu ainda dá para ganhar uma boa grana isso dá. Não acho tu nem um pouco cacura ou Irene.
CORRINHA: Para de falar merda, hoje sou uma mulher de verdade.
BRENDA: Tu és operada?! Pensava que era mona de equé.
CORRINHA: Mona de equé é meu edi. Tornei-me mulher desde os trinta anos, foi lá no Marrocos, eu e a Carola de Milano.
HANNAH: Que bicha mentirosa é aquela Carola, jurou que tinha neca.
CORRINHA: É migué da boneca, nós operamos no mesmo dia e ficamos no mesmo quarto. Eu sei que ela se arrepende até hoje.
BRENDA: E a Marquesa? Ela mantinha sempre um suspense quando era indagada.
CORRINHA: Acho que ela tem neca.
HANNAH: Vamos ver? – Aproxima-se do caixão.
CORRINHA: Sei não, acho que é pecado, vamos deixá-la em paz.
HANNAH: Pecado é sonhar com um caminhão de picas e acordar sozinha.Gargalhadas
BRENDA: Vamos ver sim, deixa comigo. Vai levantando a saia amarela da defunta.

CAPÍTULO 03
HANNAH: Minha nossa senhora das flores, que coisa enorme!! - Fazendo cara de espanto.
BRENDA: A Mona era jarruda, que jeba!!
CORRINHA: Irritadíssima. - Para com isso, deixa a outra em paz. Empurra a Brenda de perto da defunta e cobre novamente o sexo da marquesa com a saia. Porra, que merda é essa bando de filhos da puta, não respeitam nem a defunta. Um silêncio mortal toma conta do ambiente, os travestis levantam-se das cadeiras e ficam andando meio sem rumo dentro do salão. Corrinha para diante do corpo da Marquesa, tira uma carteira de cigarros do bolso do vestido florido que está vestida, acende um cigarro, dá uma baforada para cima e volta-se para olhar hipnótica o esquife. Hannah foi até a janela e fica mirando à rua alheia à chuva, que voltou a cair agora acompanhada de raios e trovões. Brenda após caminhar em círculos ao lado do caixão, parou ao lado de Corrinha, abraça e pede desculpa. Corrinha responde um tudo bem. Hannah se aproxima e senta em uma das poltronas plásticas ao lado do caixão, sendo seguida pela Brenda.
BRENDA: Corrinha, como foi mesmo a morte da Marquesa? – Senta em uma das poltronas de plásticos ao lado do caixão, acende um cigarro e olha para a defunta. Uma ligeira lágrima tenta correr de seus olhos, ela balança a cabeça e fala pra si: Agora não merda!! Nada de chorar mona Brenda, a Marquesa era só alegria. Vai Corrinha, conta tudo.
HANNAH: até os detalhes mais sórdidos como dizia a falecida. As três riem e brindam com a cachaça servida pela Corrinha. Essa cana está me deixando meio odara.
CORRINHA: Sentando entre a Brenda e Hannah, toma um gole da cana e equilibra o copo sobre o corpo da defunta. – Fique ai – Fala para o copo e em seguida olha para a defunta e conclui: Segura o copo marquesa, mas não bebe que é esse é meu. Bem monas, a história é a seguinte: Ontem à noite foi a festa de saída de santo, lá no terreiro de mãe Eufrásia da cidade da Esperança e a marquesa foi convidada por um paquera novo, um ogãn negão que toca atabaques no terreiro de nome mestre Dado. Dizia a marquesa que é um bofe de bem, porém chave de cadeia e havia passado um tempo preso lá na Argentina. Estava a dois meses de volta. Parece que o pessoal da capoeira da vila de Ponta Negra, o expulsaram do bairro por alguma sacanagem. No momento estava num fuxico com a mãe pequena Luciana Ojubilê, do terreiro da Mãe Eufrásia. Aqueles buchichos grandes que a nossa amiga adorava.
HANNAH: Ela gostava de barraco, era boca de confusão, a boneca.
BRENDA: Nem me fale, mas continue Corrinha. – Toma mais um gole de cachaça e acende um cigarro no fogo da vela.
CORRINHA: E então, ela saiu daqui toda no amarelo e nas pulseiras douradas, parecia até a Margareth Menezes levando o coletivo de piriguetes no Carnatal, um luxo!!
HANNAH: Coletivo de piriguetes? O que é isso?
BRENDA: É o Bloco Cidadão Nota 10, jumenta Alice!!!!! Todas deram uma sonora gargalhada, o álcool já começava a surtir efeito. Para um pouco que vou fazer um pipizinho. Fala a Brenda.
CORRINHA: Aproveita e traz uma latinha de cana que está em cima da geladeira. Gente é a última, quando acabar, acabou.
HANNAH: A gente vai na bodega de seu Baiaiá, ele abre para a Brenda, a boneca baixa a vovó no vovô de vez em quando, é de graça...
CORRINHA: Caridade, é nêga?
BRENDA: Estou ouvindo, viu fuleiragem- Grita do banheiro. È que ele faz direitinho, e não nego que gosto de gente mais velha. Se ele me pedir em casamento, eu caso e largo a calçada. Termina a frase com uma gargalhada, acompanhada pelas outras duas.
CORRINHA: Continuando, se as duas deixarem... Ela saiu daqui, em direção a essa festa. A última frase que falou foi que aquela noite o negão não escapava. Ele havia ligado diversas vezes naquela tarde para o celular dela. Ela chegou cedo ao terreiro, ligou para mim, insistindo para que eu também fosse à festa. Falou que ainda não havia começado os trabalhos e que iria me apresentar ao famoso mestre Dado.
BRENDA: Estou passada, eu sei quem é a prejura. É um bofe, chave de cadeia mesmo, que quis dá um migué na gente Hannah! Naquele sábado de aleluia, lá no Feitiço, lembra?
HANNAH: De bem o cafuçu, meio dundun sacumé!! Mas eu adoro um negão, só não fui porque a Brenda falou que era fria.
BRENDA: Uma amiga minha, a Suellen da vila de Ponta Negra, estava no bar Conchinchina, perto de onde nós estávamos. Conhece bem o negão de um outro bafô, sacou que estava rolando um clima e ligou para o meu celular, batendo a ficha dele na hora. Parece que estava preso na Argentina, com uma amiga dela, foi solto e veio embora. A amiga está sumida desde então. Disse ainda, que a família da mulher desaparecida colocou a policia atrás dele e ele resolveu se mandar da vila, parece que está morando lá para os lados da Redinha.

CORRINHA: Então é o mesmo, eu o conheci quando cheguei lá. Como já disse é um ogan do terreiro e estava tocando um atabaque, um negro de deixar uma operada no chão. Imagine uma mona de equé feito a marquesa, ela era meio Alice, não era bonecas?
BRENDA: Só quando queria. A marquesa era muito linheira, fazia o tipo tolinha para enganar os bofes.
HANNAH: Ela não tinha nada de Alice, era truqueira mesmo.
CORRINHA: Pois então, o bofe é versátil, afinal ele pegava tudo como vocês mesmas disseram, também pegava uma amapô do terreiro da mãe Eufrásia.
BRENDA: Você falou o nome dela. Acho que é Luciana Ojubilê.
CORRINHA: É isso, e ela era conhecida também pelo ciúme e pelos barracos que fazia por causa do amante. E a marquesa resolveu jogar o picumã na amapô.
BRENDA: Essa história de jogar o picumã nas rachas, provocar ou causar ciúmes não é legal termina sempre rolando babado.
CORRINHA: Bebendo mais um gole da cana. E então. Quando começou a gira, aquela dança em que os macumbeiros fazem um grande círculo e ficam girando e cantando pontos de macumba para os orixás; e a nossa amiga toda no dourado entrou na dança. Eu, particularmente, acho a música do candomblé um tudo , me seguro pra não cair na roda, fiquei sentada em uma cadeira ao lado da gira acompanhando com as mãos, a música era assim: O sino da igrejinha faz Belém blem blão.
HANNAH E BRENDA BUBU: Dançando e cantando. Deu meia noite o galo já cantou.
CORRINHA, BRENDA BUBU E HANNAH: Todas dançando, girando e cantando ao redor do caixão. Seu tranca rua que é dono da gira, pois sobe gira que ogun mandou.
HANNAH E BRENDA: Girando o corpo como se manifestadas. Vestimenta de cabocla é samambaia é samambaia, saia caboclo não me atrapaiá saia do meio da samambaia. Terminam a canção, todas rolando no chão do salão dando gargalhadas.
CORRINHA: Sentada enxugando o suor do rosto. Foi então que chegou um senhor de idade todo de branco e sentou-se ao meu lado, sorriu e eu claro que retribui. Acho que ficamos. - Gargalhadas.
HANNAH: Danadinha hein!
BRENDA: Enxugando o suor do rosto.
CORRINHA: Não estou morta!!Continuando, a marquesa girava e encarava mestre Dado, ele retribuía com um sorriso maroto, a Luciana viu tudo e estava espumando de ódio. Eu da minha cadeira via tudo, a marquesa brincava com fogo. Um certo momento a Luciana dirigiu-se até a marquesa e fez menção de cumprimentá-la daquela maneira que o povo do candomblé faz, um ombro de cada vez. A marquesa jogou novamente o picumã, ou seja tripudiou da amapô e abraçou-a. Não chegou a sentir a punhalada pelas costas, Luciana enfiou um punhal que devia ter uns dez centímetros de lâmina até o cabo nas costas da marquesa. Com as duas mãos em um abraço traiçoeiro. A marquesa não deu um grito, foi caindo lentamente pelos braços da assassina até o chão de barro do terreiro. O povo que estava empolgado na dança, não viu nada do crime, apenas eu, o senhor do meu lado que se chamava pai Esdras e o mestre Dado, fomos testemunhas da maldade da mãe pequena. Quando levantei e corri para o meio do salão, passando entre as criaturas que começavam a se manifestar, a Luciana passou correndo por mim, em direção a saída do terreiro. Mestre Dado parou de tocar, Pai Esdras ficou de pé, mãe Eufrásia sentiu que algo estava errado, levantou a mão direita para o alto e todo o salão fez silêncio. Chegando perto do corpo da marquesa, ordenou: - Pai Esdras, leve-a ao hospital!! Mestre Dado vai junto com a amiga dela. Qualquer coisa telefone-me e vamos seguindo com os trabalhos... Enquanto mestre Dado levava a marquesa nos braços até o carro de pai Esdras, eu seguia atrás com a cabeça fervilhando, rezava para nossa senhora das flores não deixar a marquesa morrer. Ela, nos braços do negão, não dava um suspiro. Fomos saindo do terreiro ao som do recomeço dos batuques. Ainda lembro que nessa hora cantavam uma música que demorou a sair da minha cabeça. Era mais ou menos assim: “Iansã comanda os ventos e a força dos elementos, ela é menina bonita que do céu se precipita entre o principio e o fim”. Tudo a ver com a marquesa. Só que quando chegamos ao Hospital Walfredo Gurgel, a mona estava morta. O mestre Dado sumiu e o pai Esdras também. Fiquei sozinha queridas “alone”como diria a Lorraine. Foi então que lembrei imediatamente de Darquinha cabelereira, que mora lá na Cidade da Esperança, lembram dela? É comadre da marquesa e amiga da Carola de Milano. Liguei para ela e graças a Deus a amapô chegou rapidinho ao hospital. Foi quem resolveu tudo. A racha se mostrou bem descolada. Eu, coitada, estava com os nervos em frangalhos, totalmente passada no Black & Decker. Darquinha ligou para a Carola e a mona poderosa mandou um amigo italiano, que mora lá em Ponta negra, nos procurar. O Bofe arrasou no aqué. Foi quem pagou tudo lá na funerária do Alecrim. Disse que o pedido da Carola era uma ordem. Depois, ligamos para a mãe da marquesa lá em Regomolero e o restante vocês já sabem. Bebe mais um gole da cachaça.

CAPITULO 04
BRENDA: Que lástima! Acho que acabou a cana e meus cigarros. Agora a marquesa vacilou lega!
CORRINHA: Porque, mona?
BRENDA: Agente teve numa Zoraide, lá no Pium, chamada Gilda da pitomba. Ela jogou os búzios e falou que iria rolar merda pra marquesa.
HANNAH: Mas ninguém acredita nas Zoraides, elas só querem levar o aqué das monas.
CORRINHA: Com vidente ou sem vidente a bicha partiu da gente. Vão pegar otin que tô seca.
HANNAH: Vamos ao Baiaiá pegar mais.
CORRINHA: Tô dura!
BRENDA: Eu também!
HANNAH: Mulé! A marquesa guardava o dinheiro no salto do apató, lembra?
CORRINHA: Os sapatos dela estão embaixo da cama onde dona Fifia ta dormindo. Nem pensar em perturbar a veia!
BRENDA: “A véia em baixo da cama (...)” (canta)
HANNAH: “a véia criava um veado (...)”
BRENDA: “De noite enquanto a veia dormia (...)”
HANNAH: “O viado gemia e a veia dizia (...)”
BRENDA: “Me deram um fio viado pra alegrar meu dia a dia” – Gargalhada geral.
CORRINHA: Vamos acabar essa rodada e descansar um pouco, amanhã tem o enterro.
BRENDA: Não seja curuca, Corrinha, a marquesa era muito animada. Vamos dar um jeito!
HANNAH: Vá ao Baiaiá... Ele não vai negar uma cana pra tu! Eu vou contigo mona! O barulho de uma freada brusca na frente da casa faz com que todas as atenções se voltem para o meio da rua. Um taxi encontra-se parado diante da casa. Longe, uivos de cães invadem o silêncio da noite. A forte chuva persiste. Os travestis se entreolham como se indagando quem seria essa nova visita às três horas da manhã, com todo esse aguaceiro. Pelo menos, era o que marcava um relógio de plástico, verde, em forma de estrela do mar, com a imagem de Iemanjá por trás dos ponteiros e números. O mesmo rivalizava, em quantidade de poeira, com o cartaz da Gretchen nas paredes descascadas do salão.
Um japonês feio, pequeno, gordo e suando em bicas, entra no salão carregando três grandes malas Pradas, colocando-as enfileiradas dentro da sala. Respira aliviado e, ao girar o corpo para sair do salão, dá de cara com o caixão. Treme-se todinho, persigna-se, vê os travestis boquiabertos sentados ao lado do esquife e com a voz embargada fala: Boa Noite! Depois, retorna rápido para o taxi sem esperar a resposta das travecas que continuam surpresas com a madrugadora visita. O pequeno e suado oriental retira, em seguida, um guarda-chuva de dentro do porta-malas e dirige-se até a porta do carona. Ao abri-la, surge uma estranha figura. Mais precisamente, uma gigantesca e esguia personagem vestida toda em couro negro, com um enorme chapéu de longas abas também negro, botas de couro negro vestindo até os joelhos com um salto agulha de aproximadamente vinte centímetros, um cabelo que chega a altura dos ombros tão lisos e geometricamente cortados que seguem a franja dos olhos ate as pontas como se fossem um único e negro fio que, com um suave balançar do mais simples suspiro, consegue mexer toda a cabeleira. Um rosto fino, femininamente magnífico, grande olhos circulados por lápis negros realçando a beleza, uma boca com lábios tão carnudos quanto os da estrela mundial Angelina Jolie, um corpo perfeito, grande seios e nádegas opulentas, com uma cintura que lá pras bandas de Jucurutú seria chamada de “cinturinha de pilão”. Um perfume tão delicioso para as narinas mortais que quando desceu do taxi envolveu todo o salão, ou talvez todo o bairro de Nova Descoberta, com aquela exótica fragrância. Desceu do automóvel segurando pelo antebraço esquerdo, além de uma grossa pulseira escrava em ouro com incrustações de faiscantes diamantes que refletiam a luz da bruxuleante vela que iluminava o cadáver, uma média bolsa Chanel com um pequenino cachorrinho Yorkshire que, acomodado dentro, usava uma toquinha negra com as iniciais D&G, deixando apenas de fora dois olhinhos negros perscrutando o ambiente. A enorme Mona de equé, ciente do poder que emanava a sua presença, olhou para todas e falou: Alors enfants!
CORRINHA: Meninas!!! É a francesa. – Quase gritando e correndo trôpega pra abraçar a amiga.

BRENDA: LORRAINE BIBA!!! VOCÊ VEIO. – Correu para abraçar a visita
HANNAH: Quem é louca por Fanta? – Perguntando para Brenda.
BRENDA: “Alors Enfants“ é OI CRIANÇAS em francês, tapada Alice. – Dirigindo-se a Hannah.
LORRAINE: Ta tchudo biem? Eu ter muita saudarde de vocês, bisou, bisou. – Beija as amigas.
CORRINHA: Tu se perdeu mesmo nos sotaques. É cosmopolita demais!
LORRAINE: Fazer o que: quinze anos de Paris, cinco anos entre Toscana, Capri, Milano, dois em Abu Dhabi, mais um monte de meses em Cote D’ Zur, Mikonos, Santorini, Mônaco, Pirineus, Provença, Bali, urfa! e toujours Bresil.
HANNAH: Ela é francesa mesmo ou é analfabeta?
CORRINHA: Nem uma coisa nem outra.
BRENDA: É uma metida. Isso sim! Mas vamos lá...! Chegou quando Lorraine?

LORRAINE: Nóss saírmos de Monte Carlo ontem e ontem mesmo pegamos o jatinho da Melanie para Paris, mas sem o Bandeiras. Em seguida, o primeiro vôo pro Rio. Mal pisei no Brasil, tomei aquele susto, não existe mais primêrra classe nos avion, um horror! Fiquei angustiadíssima! Como pode uma pessoa simples voar com três malas Pradas, um yorkshire aborrecido, que só veste D&G e mora numa Chanel?

Continuando cansada - O aéreo não tem tapetes, um horror!!! Meu Laboutin sofreu arranhões, eu estar trés triste. Descobri dessa terrifel manêrra que só existe a classe business nos vôos apertadérrimos para Natal. Essas companhias brasileiras são um horror, não são feitas para humanos. Sarkozy gemeu de sofrimanto o Le vôo inteirro... Não ta acostumado com desconforto.
BRENDA: Sarkozy?
HANNAH: O presidente da França veio no mesmo vôo?
LORRAINE: Gesticulando irritada – Mon dieu, Prepúcio Sarkozy é meu cão yorkshire. – Vai até a bolsa Chanel semi aberta e tira de lá um minúsculo cãozinho que, irritadíssimo, começa a grunhir ao ser colocado no chão.
CORRRINHA: Nossa, que mimo!
BRENDA: Um luxo, de boina e casaco como um bom francês.
LORRAINE: Oui Cest vrai, mas o gorro é italiano, D&G. E tem um coleçon de perruquinhas pras baladas eurropéias. HANNAH: Que que ela disse?
BRENDA: Lorraine mona – empurrando o braço de Hannah – para com essa sacanagem de tá falando em francês que não sou tradutora google de ninguém.
LORRAINE: Desculpe, eu pensei que todas falavam Frances, até Prepúcio Sarkozy comprend.
HANNAH: Eu não falo – Humildemente.
LORRAINE: Desculpa bebê! Eu não vi você, como é seu nome mesmo?
BRENDA: Começou a esnobação!
HANNAH: Assim H-A-N-N-A-H – Soletra letra por letra – tanto se escreve de frente como pra traz, tanto faz.
LORRAINE: Tão espirituosa!


CORRINHA: Porque o nome do cão é Prepúcio Sarkozy?
LORRAINE: Vejam! – Chama o cão – Vien ici, vien chien cest mama vien! O cão se aproxima rápido. Lorraine coloca-o no colo e puxa a boina que cobre sua cabeça. Ele automaticamente coloca as patinhas nos olhos e começa a grunhir lentamente como se estivesse chorando. Surge, então, uma enrugada careca rosa na cabeça do cachorro, chegando até a base da orelha parecendo a cabeça enrugada de um pênis. – Eis por que Prepúcio, queridas. Nasceu careca, cabeça de pica enrugada. E Sarkozy em homenagem ao nosso president. – Completa Lorraine. Coloca novamente a boina no cão e o solta no chão. O animal vendo-se livre corre de volta para dentro da bolsa Chanel e fica em silêncio.
LORRAINE: Olhando pro caixão. – E a marquesa, né? Mon Dieu, que lástima!

BRENDA: E então, estamos bebendo a defunta, mas acabou a cana e a grana!
LORRAINE: Dinhêrro nom é problemê. – Caminha até a bolsa Chanel onde está alojado o cãozinho, retira de dentro uma carteira Cartier e dela extrai uma pequena soma de dinheiro. Pega uma nota de cem reais e passa para Brenda. Cest ça? Querro dizer Chega?
BRENDA: Dá pra comprar até o Baiaiá! Vamos Hannah, Corrinha faz companhia pra francesa.
CORRINHA: Vão, mas voltem logo. To com sede também.
LORRAINE: Ta bebendo, hein veia?
CORRINHA: Me respeite vagabunda, que tu é quase da minha idade.

LORRAINE: Era querrida! Fui uma bia no passado distante. Usam bia aqui no Bresil para biba quase idosa? Quando fui pobre eu era feia, agora sou rica e poderosa, RICA!! Comprei minha cara, sou dona da minha idade que é a que seus olhos e o mundo vêem, ou seja, no máximo trinta e um anos.

CORRINHA: E verdade, tu ta é nova. Ta morando onde? Já sei, em hotéis pelo mundo.
LORRAINE: Blasé. Um dia num estúdio an Paris ou London, outro em um castelo no vale de Loire, um resort em Bali, inverno na Cotê D’azur com Albert, verão em Amsterdam, adoro andar de bike entre as tulipas amarelas nos parques holandeses. Semana passada estava com um namoradinho alemão em Dubai, eu e a Naomi com seu príncipe saudita, mas ela é barraqueira demais, vive jogando celulares no povo, arff! Depois que meu marido morreu, virei cidadã do mundo, sou eu, Sarkozy e nossos passaportes. Meus ex’s deixaram castelos na Riviera Francesa, Vinhedos em Portugal, Vilas na Catalunha, uma Ilha na Grécia, Estâncias no sul do Brasil, Resort na Indonésia, até time de futebol na Inglaterra eu possuo, acreditas? Surgem na janela, do lado de fora da casa, Brenda e Hannah que ficam ouvindo boquiabertas a conversa.
HANNAH: E nós aqui pigorando Baiaiá pra pegar cana. Brenda quase baixou a vovó!
BRENDA: CALADA!
CORRINHA: Voltando-se para Lorraine. – Ele era um sheik, não era?
LORRAINE: Não querida, era um ditador africano; Uma lapa de negão, de coroa de ouro, brilhantes na cabeça e tudo! O Sheik foi antes do africano, morreu também, me deixou alguns diamantes e pagou a minha cirurgia.
CORRINHA: Tu tens sorte hein?
LORRAINE: Nem tanto. O país dele já entrou na Corte internacional, para me tomar tudo, mas eu tenho uma boa dúzia de bons advogados e vai dar tudo certo. – Dirigindo-se para o caixão da Marquesa. – Nossa como ela ta pálida, vamos maquiar e dar um brilho na amiga, eu tenho a nova coleção da Coty na nécessaire. As duas travestis resolvem sair de trás da janela e adentrar na casa.
BRENDA: Entrando com uma garrafa de cachaça. – Eu já havia falado isso.
HANNAH: Com outra garrafa e cigarros. – E eu concordei, mas me tomaram o esmalte.
CORRINHA: Elza Maria! Você queria era me roubar!
LORRAINE: Vamos tirar ela do caixão e sentar numa cadeira, fica melhor de maquiar. Juntam-se todas e retiram o corpo da marquesa do caixão, sentando-a em uma cadeira de plástico do salão. O pescoço fica caindo para frente. Corrinha vai até outro ambiente e retorna com uma almofada de cetim vermelha, colocando-a ao lado do pescoço para apoiar a cabeça. – Pronto, assim ta melhor! Fala Corrinha para si mesma.
LORRAINE: Meninas, sirvam a bebida que vou começar a maquiagem. As travestis dividem-se. Uma serve as doses de cana, enquanto outra vai pegando as cadeiras e colocando-as em frente à cadeira onde se encontra sentada a marquesa esperando a maquiagem.
HANNAH: Alguém sabe por que esse nome de Marquesa Di Fátimo?
Revisão de Gilberto F. Costa

CAPÍTULO 05

CORRINHA: Porque nasceu dia 13 de maio. Dia de Nossa Senhora de Fátima! - Persigna-se
HANNAH: Então era para ser Di Fátima!
BRENDA: Óh Herege Alice, a Marquesa é um viado, uma bicha, um travesti e não uma mulher. O nome da Marquesa era Mário di Fátimo! Loucuras da cabeça da mãe dela, que queria uma filha e nasceu uma biba.
HANNAH: Se você tivesse os estudos que eu tive, parava de me fazer Bulling.
LORRAINE: Passando o pancake no rosto da Marquesa. – E o que você estudou mon couer?
CORRINHA: Fala uó! A luxuosa lhe chamou de coração.
HANNAH: Oxente! Todo mundo fala francês, menos eu? Vai vê que se a Marquesa acordar agora vai dar “bonjour.” – Todas caem na gargalhada. – Bem, com doze anos fui expulsa de casa. Minha mãe pegou meu padrasto montado atrás de mim na pia da cozinha e claro que quem levou a culpa foi a Fafá de Belém aqui, né?! Fui viver no mercado ver o peso. Passava o dia ajudando nas barracas da feira e a noite dormia embaixo delas, quando conseguia dormir. Logo cedo, descobri que podia ganhar dinheiro mexendo o corpito e gemendo um pouco.
Esses foram os dois anos de meu primeiro grau, com colação e tudo, me prostituindo pelos buracos de Belém do Pará. Depois, peguei carona com um motorista gaucho e fui parar em Brasília. Levamos duas semanas para chegar porque o motorista preferia ficar montado em cima de mim do que dirigir. Eu até gostava da sacanagem, tudo era novidade pra mim. Fiz o inicio do segundo grau em dez dias. Depois, me largaram no centro de Brasília, no famoso Plano Piloto. Fui lá para a antena gigante do centro, onde tem uma feira hippie.
Toma um grande gole de cachaça, respira, pega o cigarro da mão da Brenda, traga, solta suavemente a fumaça. – Estava iniciando o final do meu segundo grau. Sentada na ponta da antena gigante da TV, eu vi um velho cego tocando acordeon.
Aproximei-me para ouvir a melancólica melodia que falava de uma triste partida, dezembro chegando, de invernos, coisas assim. A suave e depressiva melodia invadiu minha alma e me deixou do tamanho de uma formiguinha. Descobri que estava sozinha nesse mundo de meu Deus e não tinha ninguém nem pra rir de mim se eu levasse um tombo na calçada. Um vazio enorme tomou conta de mim. Abri um berreiro, chorei e solucei feito uma desesperada. Acho que só ali caiu a ficha do que estava acontecendo com a minha vida. Estava com apenas dezessete anos. As pessoas passavam e me olhavam espantadas e algumas enojadas, tipo: “o que é isso? Um desgraçado de um viadinho, um projeto de travesti, magro, mirrado e triste está chorando por que”?
O velho e cego músico veio até onde eu estava, parou a musica e ficou afagando o meu cabelo. Levantou o meu queixo e perguntou se eu queria ir com ele para sua casa. Eu topei na hora. Saímos dali até a rodoviária onde ele comprou duas passagens para Caruaru em Pernambuco. Na viagem, dormi até Petrolina. Foi quase um dia e meio de sono. Quando acordei, ele havia comprado uma maçã e várias caixas de todinhos pra mim. Foi então que me senti amada pela primeira vez. Ficamos juntos por três meses e só então é que fui prestar atenção no homem que ele era. Estava sempre muito limpo, asseado, cheirava a seiva de alfazema, tomava vários banhos por dia. Um dia levou-me a um salão de beleza de um amigo dele, um cearense de nome Landson, gente finíssima e dono de uma gentileza maravilhosa. Foi ele que me ensinou o ofício de cortar cabelos, pintar na química, escovar e até fazer unhas. Fiquei trabalhando um bom tempo com ele. Através do maridão Steve Wonder, da caatinga, eu pude conhecer todos os cegos da redondeza. Já estava até baixando a vovó em braile. Brincadeirinha!
E continuando: Sabem aquelas três irmãs ceguinhas que cantam uma música que quando entra na sua cabeça não sai mais? – As três travestis acenaram “não” com as cabeças. – Bem, é mais ou menos assim: “Atirei no mar, o mar vazou, atirei na moreninha baliei o meu amor”. Não me pergunte o que significa que eu não entendo poônra nenhuma dessa letra, só sei que elas fizeram um filme e foi sucesso. Estava tudo indo aparentemente bem. Porém, eu estava insatisfeita, tenho alma de cigana, não queria ficar ali para sempre, apesar de Caruaru ser linda. De noite, ela parece um gigantesco cuscuz iluminado. Coisa mais que bela, mas me entediava. E o outro problema é que o cego Azrael, esse era seu nome, queria a toda hora ta metendo. Era de manhã, de tarde, de noite, feito cantiga de grilo. Era só ficar a sós e lá vinha ele com a sua estrovenga. Gente, a neca do vovô era coisa do outro mundo! Sabe uma Josefina? Tipo colher de pau de mexer canjica, fina e enorme? Era assim! Eu estava ficando afolozada! Resolvi falar pra mim mesma: “tá na hora de partir!”
Foi então que numa noite fria de inverno, com um belíssimo céu estrelado, depois de nos apresentarmos no pátio do museu de mestre Vitalino, lá no alto do Moura – onde dei uma belíssima Elza numa vaquinha de barro, malhada em preto e branco e assinada pelo próprio Vitalino, a qual guardo como o meu maior tesouro – decidi: aquela seria a noite da minha partida.
Quando estávamos em casa, depois de mais um amorzinho rápido, o véio Azrael decidiu dormir. Eu fui também, fingindo, claro, que estava com sono. Mas, bonecas, aprendam uma: um cego consegue vê o que se passa na sua alma. Não sei o que houve, só sei que, quando me deitei, ele virou-se para mim, passou a mão no meu cabelo do mesmo jeito que fez no dia em que nos conhecemos... Arrepio-me até hoje quando lembro. Vejam! – Mostra os braços.
CORRINHA: Fala logo estrupício!
BRENDA: Já tô nervosa com o final, parece novela. – Toma quase um copo inteiro de cachaça e engasga-se.
LORRAINE: Calma louca! De onde saiu essa tem mais. – E continuou maquiando a Marquesa.
HANNAH: Já que insistem tanto, vou continuar! O cego Azrael – que para mim era o anjo do enxerimento – afagou o meu cabelo, fitou aquele olhar sem brilho nos meus olhos e falou: “Pegue o dinheiro que está dentro do minhaeiro.” Era um cofrinho de uns vinte centímetros de tamanho, na forma de um elefante de cerâmica, muito comum em Caruaru. Era o lugar onde ele guardava as economias. E continuou: “Junte tudo, pegue também esse cordão de ouro”, e foi tirando do pescoço um grosso cordão com uma medalha de São Jorge. É para lhe proteger e que Deus e Santa Luzia lhe acompanhem! Foi terminando essas palavras e virando para o outro lado da cama. Monas... Eu fiquei passada! Estava pensando em dar uma Elza no bofe cego e ele me deu o que tinha de melhor: sua bondade. Sai dali em prantos. Isso foi o meu vestibular na vida.
LORRAINE: E como você chegou aqui? – Estava nesse momento passando um batom vermelho nos lábios da Marquesa, enquanto Corrinha escovava o Cabelo da defunta.
HANNAH: Novamente de carona. Peguei minhas coisas, escondi o cordão de ouro ou trancelim – como chamava minha querida avó Eva e que Deus a tenha – dentro de um saquinho plástico e o coloquei dentro da minha calcinha. Dalí, só tirava quando precisava trabalhar. Mocozei meus panos de bunda e a vaquinha de mestre Vitalino, embalada com bastante papel jornal, e fui para a estrada. Depois de baixar a vovó dezenas de vezes e já com a boca dormente, é que cheguei a Natal.
De inicio, fiquei fascinada pela cidade. Limpinha, uma brisa acariciando nosso rosto, belas casas. Na primeira noite conheci a finada Marquesa, ali, no calçadão da praia de Ponta Negra. Umas amigas minhas de Caruaru já tinham me passado a ficha da pegação que rolava no calçadão. Aluguei um quartinho numa pensão de Dona Beta, na vila de Ponta Negra, bem próximo do cruzeiro, e na primeira noite me joguei no calçadão. Lembro-me que era uma noite fria, sem estrelas no céu. Uma brisa gelada fazia o bico dos meus peitos doerem pra burro. Estava vestida apenas de mini saia e um top. Pronta pra luta. A praia estava cheia de uns gringos lindos, uns lourinhos enormes que eu faria de graça. Adoro homem alto, mas não podia fazer por amor, estava ali pra ganhar o meu pão. No céu, uma coruja do tipo rasga mortalha passou agourando, sobre minha cabeça. Assustada, fiz o sinal da cruz! Foi aí, então, que quase me aconteceu uma desgraça.
BRENDA: Eu sei dessa história!
LORRAINE: Umedecendo a ponta do lápis na própria boca e levando-a as pálpebras da Marquesa. – Ferme La Bouche, Mona! Desculpem, eu disse, cale a boca Bubu, eu quero ouvir tudo!
HANNAH: Um grupo de travas, do tipo barra pesada, não gostou da minha presença no ponto delas e se juntaram pra me dar um pau. Eram seis! Chegaram de surpresa, me jogaram no chão e uma delas puxou uma gilete para cortar minha cara. Eu já tava me sentindo lascada, toda reiada no cimento, quando surgiu a Marquesa dando um tremendo escândalo e atraindo uma viatura da polícia. Terminamos todas, naquela noite, dormindo na cadeia. Claro que eu e a Marquesa dividíamos a mesma cela e as outras estavam noutra. Mas, uma semana depois eu já havia conquistado todas elas. Viramos amigas de infância! Agora estou fazendo mestrado, em pleno calçadão da Roberto Freire, a partir das vinte e duas horas.
LORRAINE: Cest La vie! É a vida! Está quase terminada a maquiagem.
BRENDA: Eu tava lembrando, agora, da última vez que saímos juntas para se divertir. Lembra, Corrinha?
CORRINHA: Lembro! Foi na festa do boi do ano passado.
HANNAH: Foi massa! O final, então, foi um tchuuuuddoo!!!
CORRINHA: Era o dia do aniversário da Marquesa e quem se apresentou na festa foi o Fagner.
HANNAH: Não foi por isso que nós fomos? Por causa do Fagner! A Marquesa era louca pelo Fagner.
BRENDA: Mas, o mais divertido foi mesmo ficarmos todas embriagadas e terminarmos a noite com aqueles vaqueiros de Santo Antonio do Salto da Onça!
HANNAH: O seu, né mona?! Eu terminei com o patrão americano deles. Lembram-se de um louro altíssimo, das pernas bem finas, com um andar de cowboy? Mas, com um bafo do cão! Parecia que tinha chulé na boca e insistia o tempo todo em me beijar. Precisei tapar as narinas na hora, lembram?
CORRINHA: O nome dele era Derrick... Nunca esqueci! Um nome bem bonito!
HANNAH: Mas o bafo era um veneno! Apelidamos-lhe de venenoso.
Todas caem na gargalhada, menos Lorraine que fala: – Não estou vendo graça nisso!
CORRINHA: Lorraine, minha linda! Ficamos todas tão bêbadas que acordamos com o sol na cara, jogadas nas cocheiras, no meio da bosta dos cavalos e capim, com os bofes rindo horrores da cara da gente!!!
BRENDA: De vocês? Que nada! Estavam todos dando gargalhadas de mim!
LORRAINE: Por quê?
HANNAH: O bofe que ela pegou lhe roubou a calçinha e a biba estava vestida apenas com um pretinho básico e bem curtinho. Quando ela espirrava a neca aparecia!
BRENDA: Bi! Eu tenho alergia a capim e comecei a espirrar desde quando acordei! Cada espirro era uma gargalhada dos bofes vaqueiramas e por mais que eu puxasse o vestido até os joelhos o danado subia. Foi um sufoco voltar para casa.
CORRINHA: A marquesa mijou-se toda, dentro do ônibus, de tanto rir.
HANNAH: Quase fomos presas e ainda teve um bebo chato que nos perturbou até o busão chegar ao campus universitário.
CORRINHA: Pegamos o ônibus cheio e a pobre da Bubu ficou prendendo o vestido entre os joelhos. Mas enquanto ela puxava na frente, a traseira do vestido subia deixando a bunda toda de fora.
BRENDA: O bebo ficava gritando: “Eita, que bunda gostosa!” E eu achando ótimo. Mas, uma garota evangélica começou a reclamar e eu com medo de mais confusão fui puxar o vestido atrás e aí o motorista freou de vez. Eu, claro, levantei os braços pra me segurar e não cair...
HANNAH: E aí foi neca pra todo lado! A biba é dotada, né?!
CORRINHA: O bebo gritou: “Êpa, que é uma muié de trouxa!”
BRENDA: Todo o ônibus olhou para trás. O cobrador puxou a gargalhada e o ônibus veio abaixo de tanto as pessoas rirem.
HANNAH: Inclusive a gente!
CORRINHA: Descemos ali mesmo em Potilândia e viemos a pé até aqui.
LORRAINE: Deve ter sido bem constrangedor?!
BRENDA: Que nada! Em solidariedade a Hannah, Corrinha e a Marquesa também tiraram as calçinhas e quando chegamos diante do quartel do exercito, nos viramos para a sentinela e mostramos as bundas.
LORRAINE: Acho que estou um pouco alta, tonta talvez. Bebemos bastante! Pronto, a maquiagem está perfeita!
HANNAH: Estamos é bêbada! Nossa! Você arrasou amiga! Essa é a verdadeira Marquesa! Ela tá linda!
CORRINHA: São quase cinco horas e daqui a pouco começam a chegar os convidados.
BRENDA: Tô com vontade de cantar a musica dela. Vamos?
CAPÍTULO 06
CORRINHA: Inicia: ¬– “Tenho um coração, dividido entre a esperança e a razão!...”
HANNAH E BRENDA: “... Tenho um coração,
Dividido entre a esperança e a razão,
Tenho um coração,
Bem melhor que não tivera!
Esse coração,
Não consegue se conter ao ouvir tua voz.
Pobre coração,
Sempre escravo da ternura...”








LORRAINE: Vai até a cadeira, levanta a Marquesa e, abraçando-a com carinho, murmura a canção já que desconhece a letra e inicia uma dança sendo acompanhada pelas outras. Nesse momento, todas estão de pé, juntas, movidas por uma só coreografia e cantando em voz alta.
TODAS:
“... Quem dera ser um peixe,
Para em teu límpido aquário mergulhar
Fazer borbulhas de amor prá te encantar,
Passar a noite em claro,
Dentro de ti,
Um peixe,
Para enfeitar de corais tua cintura,
Fazer silhuetas de amor à luz da lua,
Saciar esta loucura
Dentro de ti...”

Enquanto estão cantando vão passando o corpo da Marquesa, entre elas, como se estivessem encenando uma dança final. As lágrimas começam a correr pelos olhos da Corrinha. Brenda tenta disfarçar porque, naquele momento, é ela quem está dançando com a Marquesa. Não aguenta, chora e canta emocionada. A dança segue encabeçada por Hannah que agarra o corpo da amiga como se fosse uma boneca gigante e, afagando o cabelo da amada Marquesa, murmura a letra da música como se ninasse para ela dormir. Lorraine, chorando e soluçando, vai até a Hannah e a abraça seguida pelas outras amigas. De repente, estão todas murmurando a letra da música, abraçadas entre si, numa lenta coreografia como se estivessem protegendo-se. Depois, seguem com o corpo da Marquesa até a cadeira, sentam a amiga e continuam abraçadas, chorando e soluçando. Lá fora, a chuva engrossou estupidamente, raios e trovões pipocam no ar, cães latem assustados pelas ruas. No alto da escada, Dona Fifia, a mãe da Marquesa ainda sonolenta, observa em silêncio. Lágrimas varrem o rosto daquela velha senhora que, na sua ignorância e ingenuidade, sofre com a solidão daquela cena. Sem conseguir entender fica perguntando a Deus o porquê daquilo tudo. Ao mesmo tempo, conscientemente, repreende-se por querer contestar. Sente, no íntimo, que não existe culpa, apenas, nada se explica. Resolve sentar no frio degrau de cimento da escada e aguardar o desfecho daquela situação. E ali fica respirando e chorando, quase num murmúrio, com medo de atrapalhar a emocionante despedida da sua filha. Depois de certo tempo, a chuva já havia diminuído bastante. Apenas, pequenas gotas insistiam em cair, talvez, para continuar lavando o asfalto. Da janela do salão dois garotos olhavam, admirados, aquele quadro que se desenrolava diante dos seus olhos: um cadáver de olhos fixos no vazio, sentado com a cabeça pendendo para o lado esquerdo, com os cabelos desgrenhados, cercada pelo lado direito por uma travesti enorme e toda de negro, roncando e babando, acompanhada de um cachorrinho que enlouquecido no pé da mesma, grunhia baixinho. Do lado contrário outra travesti, loira, com a cabeça largada, pendendo para trás da cadeira, de pernas abertas e um vestido curto que deixava a calçinha vermelha à mostra com a neca saindo do lado. Sentadas no chão do cimento frio estavam mais duas estranhas criaturas com as cabeças deitadas sobre os joelhos da defunta, a dormir.
DONA FIFIA: Entrando na sala e indo até as travestis. – Meninas, acordem! Acabei de fazer um café fresquinho e um cuscuz com ovos para vocês. Vamos, levantem. Temos que nos aprontar para o enterro. Levantam-se em um pulo, assustadas, como que pegas num flagra.
CORRINHA: Hi, meu Deus! Desculpe-me, Dona Fifia. Acho que nos excedemos.
LORRAINE: Para com isso Sarkozy! Já pra bolsa. – O cão sai correndo para dentro da valise Chanel.
BRENDA: Meu Deus, puxando o vestido pra encobrir os joelhos, eu estou um caco! Vamos tomar café, lavar a cara e preparar o cortejo.
HANNAH: É isso neguinha. Nossa, que bafo hem! Brenda parece o venenoso. Dirigem-se todas para a cozinha enquanto Dona Fifia acende uma nova vela no mesmo prato Colorex. Substitui as varinhas gastas de incenso, vai até a porta, olha para o lado de fora e convida as crianças para entrarem.
MENINO: Mãe! – Gritando em direção a casa vizinha. – Vem agora, os boiolas já acordaram.
D.ANA: Cale a boca Franklin Albuquerque! Dona Fifia, desculpe meu filho, ele não sabe o que fala.
D. FIFIA: Alisando os cachos dourados do pequeno Franklin. Faz muito tempo que convivo com as chacotas do povo para o meu filho ou filha, mas isso agora não importa mais.
Faz-se silencio, novamente, no salão. Começam a chegar os vizinhos: Seu Baiaiá e Dona Hermênia; os gêmeos de dezesseis anos, Diogo e Durval, irmãos do policial Dorgi ¬– que moram nos fundos do salão da Corrinha – a quem, de vez em quando, a finada Marquesa fazia uns agrados nas noites de solidão. Chegou Dona Neném com seus cinco filhos; o barbeiro Bezaliel que havia deixado, novamente, a igreja Assembléia de Deus por mais uma recaída na cachaça, embriagado, colocou-se sentado ao lado da Marquesa alisando suas mãos e chorando baixinho. De vez em quando soltava uma pérola do tipo: “Disse alguém: ‘aquelas que usam o traseiro para viverem morrem sentadas’. E tenho dito”. Ninguém entendia o porquê dessa expressão, talvez esse tenha sido um dos segredos que a Marquesa levou para o túmulo. De repente, ouve-se uma algazarra lá fora. Dois carros param e deles descem Jarita e Shakira ainda montadas. Haviam acabado de sair dos seus shows e vieram, juntamente com um grupo de fashionistas, se despedirem da divertida Marquesa. Em seguida, chegam outros carros e deles descem Diana Fontes e um grupo de bailarinos que, conversando com Dimas Carlos no Bardallos, souberam do velório. Também chegam Josean Rodrigues, Costa Filho, Lula Belmont, Ricardo Nelson e Civone. Nenhum desses conhecia a Marquesa, mas queriam saber como era um velório de uma travesti. Acharam que seria interessante e resolveram acompanhar, com um olhar artístico, o cortejo. Civone já estava com um poema, em criação, para ler no ato do enterro. E com o passar das horas o salão foi ficando cada vez mais cheio e apertado. Lá fora, o tempo resolveu escurecer novamente e uma ligeira neblina começou a cair sobre a calçada. Um burburinho tomava conta do velório. Milhares de cheiros se misturavam: cigarros, velas, incensos, perfumes caros e baratos mesclavam-se no ar. Brenda Bubu foi a primeira a voltar da cozinha, seguida por Corrinha, Hannah e Lorraine com Sarkozy no colo. Dona Fifia, que havia acabado de calçar as sandálias plataformas amarelas na filha Marquesa dirigiu-se para a cozinha. As travestis foram cumprimentando as visitas conhecidas com muitas risadas, algumas até gargalhavam, mas quando lembravam onde se estavam levavam a mão aos lábios, como num ato de censura.
CORRINHA: Bem, já está perto das oito horas e o enterro está marcado para as nove. Vamos então colocar a amiga no ataúde e seguir o cortejo.
LORRAINE: A pé?
BRENDA: Quer o que? Um Volvo?
HANNAH: Mulé, o cemitério é bem aqui, pertinho, uns duzentos metros, talvez; e é ladeira abaixo.
LORRAINE: Mas, e o meu Laboutin?
HANNAH: Deixa na geladeira que, quando voltarmos, eu faço no coco. Adoro lagostim no coco!
BRENDA: Equina Alice! LABOUTIN é um sapato, um sapato carésimo, coisa de mais pra mil reais.
HANNAH: Com os olhinhos brilhando de cobiça: – Então, deixa que eu cuido. Dê-me aqui que eu guardo.
CORRINHA: NUNCA, ELZA MARIA! NUNCA! Estou vendo o brilho dos seus olhos. Lorraine vamos comigo lá em cima. Você calça algo da Marquesa e eu guardo seu laboutin na chave. – Olhando pra Hannah.
HANNAH: Toda essa frescura por causa desse scarpin de solado vermelho. De repente, do meio da multidão, surge uma voz estridente e afetada.
SHAKIRA: É o meu sonho de consumo!
JARITA: Tentando descer sua micro saia que reluta em subir mais ainda. – Eu uso para lavar o carro.
DIANA FONTES: Essas criaturas são demais, só perdem em criatividade para as novelas de Junior Dalberto!
DIMAS CARLOS: Ele agora tem um portal próprio. É o PORTALJRDALBERTO, vejam no Google.
RICARDO NELSON: Tudo a ver com ele!
CIVONE: Eu soube que, essa semana, ele vai estrear uma novela: “O SEGRÊDO DE MARIA ISABEL”.
RICARDO NELSON: Ele me falou que o título é “ONDE O AZUL É MAIS AZUL”.
DIANA FONTES: Não importa, qualquer que seja o título é garantia de sucesso novamente. É muita loucura naquela cabeça.
DIMAS CARLOS: Leio tudo dele. Adoro o livro “Pipa voada”. – Acende mais um cigarro sendo seguido por Diana.
RICARDO NELSON: A cena do livro em que o padre é abduzido é tchudo!
DIANA FONTES: Eu, pessoalmente, adoro as seduções do Ariel!
DIMAS CARLOS: Mulé, e o terreiro de macumba? Tem coisa mais engraçada que o Pai Bebé? Todos concordam com gargalhadas. Enquanto isso, Corrinha está suando em bicas tentando colocar o corpo da Marquesa no caixão sendo ajudada pelos gêmeos Diogo e Durval.
CORRINHA: Desolada: – Eita, e agora?

BRENDA: Que houve?
CORRINHA: O corpo da Marquesa enrijeceu!
HANNAH: Puta que pariu! - Tenta empurrar as pernas da defunta para baixo e, ao fazer isso, o tórax da Marquesa levanta. As pernas endureceram dobradas, com os joelhos colados e as canelas abertas em forma de v, como se permanecessem ainda sentadas na cadeira; o pescoço enrijeceu caído para o lado; os braços, tais quais dois cabos de vassouras, pendiam duros e rentes ao corpo; os olhos, esbugalhados, pareciam bem maiores por causa do delineador que fora aplicado pela Lorraine; na boca destacava-se o batom na cor vermelha berrante.
LORRAINE: Mon Dieu! E agora, que vamos fazzer? Pobre amiga, que situação! Que situação! – Nervosa e agarrada com a bolsa, balançava o cãozinho para todos os lados. As crianças que estão próximas a ela torcem pela queda do cão que fita a todos, amedrontado pelo desequilíbrio da dona. As pessoas que estão assistindo a toda aquela encenação das travestis nervosas, se voltam para uma voz masculina que se sobressai no meio da multidão: – Vamos colocar a Marquesa numa rede e, dessa forma, levar para o cemitério.
TODAS: DORGI!!!

HANNAH: Bofescândalo e ainda inteligente!
DONA FIFIA: Corrinha, você tem alguma rede?
CORRINHA: Tenho uma nova com varandas, nas cores do flamengo e com o rosto do Fenômeno que eu mandei bordar. Amo aquele bofe!
BRENDA: Só você, minha véia?
HANNAH: Que nada! As travas do Brasil todo!
LORRAINE: As européias que o digam.
DONA FIFIA: Deixem de trololó e vá pegar a rede. – Apontando pra Hannah.
HANNAH: Tudo eu! Tudo eu! – Vai subindo a escada, irritada, em busca da rede. Mas, uma freada na porta da casa faz todos virarem o pescoço para ver quem está chegando. Dessa vez, é o taxi de Juinão que vem trazendo a mãe Eufrásia e alguns seguidores com alguns baldes cheios de pétalas de rosas vermelhas e amarelas. A macumbeira traz na mão uma longa vela vermelha. Antes de entrar olha para o lado de fora da porta, cumprimenta o vazio e dar uma risada para, em seguida, adentrar ao salão. Algumas pessoas correm para beijar a mão da velha mãe de santo. Ela vai gentilmente agradecendo e pede para Juinão acender a vela vermelha e colocar ao lado da branca dentro do prato Colorex. Em seguida, dá um passo para frente e grita algumas palavras em Yorubá. Aplaude e todos a seguem nos aplausos. Menos os evangélicos que saem de queixo erguido do salão e vão para o lado de fora da casa esperar a saída do caixão, distribuindo panfletos às pessoas que vão chegando para o velório.
JUINÃO: Quem você viu lá fora, minha mãe?
MÃE EUFRÁSIA: Um bocado delas... Até aquela magra e seca da televisão, a tal da Lacraia juntamente com outra negona, a Vera Verão, e uma dos peitos enormes. Estão rindo, juntamente com a Marquesa, de todo mundo aqui.
JUINÃO: Como é que pode minha véia? Será que elas se conheciam?


O velório da Marquesa Di Fátimo – Final



De Junior Dalberto

CAPÍTULO FINAL
MÃE EUFRASIA: A viadagem tem uma energia própria. Elas estão aonde o pensamento leva, continuam sempre juntas em qualquer lugar do universo. Fazem a alegria dos orixás. Oxalá que o diga.
As pessoas começam a ficar sufocadas com tanta gente falando, fumando e rindo dentro daquele salão, onde a cada instante chegava mais visitantes. No meio da balbúrdia, Diana Fontes já imaginara uma coreografia para o momento; Dimas Carlos pensa em mudar a forma natural do cortejo, achava que a rede deveria seguir no final e o poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poderia ser cantado por todos; Isaque Galvão, louco para soltar a voz, já ensaiava alguns trinados; Civone achava que o poema deveria ser falado e não cantado; Costa Filho achava que uma chuva de pétalas de rosas e papel picado seria ideal para iniciar a saída do féretro; Lula Belmont chegou com uma garrafa de cana e todos esqueceram, por enquanto, o cortejo artístico e foram beber, mais uma vez, a defunta. Mais um carro, com uma freada brusca, pára do lado do salão de beleza e dele descem o grande fotógrafo e artista plástico Maxwel Pereira e seu assistente Bakal, trazido para Natal pelo próprio Maxwel de uma Nórdica viagem. Com requinte, o profissional fotógrafo passa a documentar tudo com seu olhar único sem perder nenhum detalhe daquele funesto acontecimento.

Finalmente, Hannah chegou com a tão aguardada rede. Colocaram um grosso caibro no meio separando os punhos. Deitaram a marquesa e cobriram-na com flores que haviam sido providenciadas pelas macumbeiras. Só então, o cortejo segue com o calçamento ainda molhado pela chuva. Quem iniciou o carregamento da rede foi o policial Dorgi, segurando na parte da frente da rede, enquanto atrás seguia a Lorraine com a ponta do caibro no seu ombro direito e no antebraço esquerdo a valise Chanel com Sarkozy.
Ambos tentavam escapar das poças de águas espalhadas pelo estragado asfalto. Em todo o trajeto, a varanda da rede arrastava suas pontas pelo chão. Alguns metros adiante foram trocando de carregadores, todos cedem à vez com parcimônia querendo participar da despedida da Marquesa. Apenas o Dorgi não deixava ninguém tomar o seu lugar. Aproveitando-se dessa situação, a travesti Hannah de Belém foi até próximo dele, seu bofescândalo, como o chamava e “se jogou”.

HANNAH: O gostoso é pra jogo? – Enquanto rodava, disfarçadamente, a coroa de flores de plástico na mão.
DORGI: Claro que sim. Sempre tem jogo comigo. Vivo na trave.
HANNAH: Tenho fissura em tu, visse!? Quando agente pode ficar?
DORGI: Trocando o caibro de ombro para continuar segurando a rede. – Estou livre até o meio dia. Vá depois do enterro.
HANNAH: Tô toda molhadinha só de pensar. Vou mesmo, viu bofe!? Mas fique fardado, pois nunca peguei um alibã. – Dá vários pulinhos.
DORGI: Olhando para os lados. – Tudo bem, mas não dá bandeira. Deixe-me ir à frente, ok?
HANNAH: Não se preocupe, não vou falar pra ninguém, eu juro! – Leva os dois dedos indicadores, em cruz, aos lábios, como que selando a promessa e vai ficando para trás para falar com a Brenda.
HANNAH: Brenda Bubu, Mona de Deus! Consegui o Dorgi. Depois do enterro da Marquesa vou dar pra ele.
BRENDA: É ruim, hem? Ele é pura panqueca.
HANNAH: E panqueca não vira para os dois lados para não queimar, queridinha!?
BRENDA: Bi, você é o cão chupando manga.
CORRINHA: Mais atrás e ouvindo a conversa. – Poderosa! Mas vai perder a partilha das coisas da Marquesa.
HANNAH: Guarde qualquer blusinha para mim, ou aquela micro saia xadrez da Controle... A que ela usou no carnatal. Eu a acho linda, ta bem?
CARMINHA: Por mim tudo bem! Mas veja que chegou muito viado pro enterro, não sei como vamos organizar.
BRENDA: Deixa comigo, eu sei como fazer. Vamos usar a Lorraine, ela é grandona e rica, as outras respeitam as luxuosas.
LORRAINE: Será um prazer encerrar a festa!
O tempo escuro encobria um sol que, teimando em querer aparecer, foi transformando uma chuva de gotículas em um lindo arco-íris que se iniciava no céu e seguia para dentro dos muros do cemitério. De repente, Brenda Bubu não conseguiu ficar calada e iniciou a canção que a amiga Marquesa tanto a amava.
BRENDA BUBU:
“... Tenho um coração
Bem melhor que não tivera..
.”
HANNAH, CORRINHA E LORRAINE:
“... Esse coração
Não consegue se conter ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura
...”
Algumas senhoras, inclusive a Dona Fifia, ensaiavam uma Salve Rainha. Os evangélicos começaram a entoar a famosa canção “Segura na mão de Deus”. Porém, foram engolidos pelas borbulhas de amor do Fagner, a musica preferida da finada.
Esta era cantada com emoção e diversas vezes repetida. Misturava-se às lagrimas salgadas que desciam pelos olhos das crianças, dos bêbados, das travestis, dos artistas, amigos e desconhecidos que presenciavam o estranho cortejo e se juntavam ao féretro, envolvendo-se naquela canção como se fosse cantada por uma só voz.
Quando a rede, balançando de um lado para o outro, chegou a apenas alguns metros do portão do cemitério já eram quase dez horas. Em frente ao cortejo, Mãe Eufrásia e seus acompanhantes surpreendem e assustam a todos ao se jogarem, de cara, nas sujas areias em frente ao portão do cemitério. Todo o cortejo para e silencia.
A velha macumbeira levanta-se e de joelhos, num profundo lamento, solta a voz em Yorubá, sendo acompanhada pelo seu povo. Depois, fica de pé e vai até a rede onde está a Marquesa, da um sorriso de despedida para a defunta e em seguida dirige-se à multidão justificando que a ela só seria permitido chegar até aquele lugar: a porta do cemitério. Decidida, com um gesto na mão esquerda, dá ordem para o taxista Juinão retornar com ela e seus acompanhantes para o terreiro.

A estranha procissão eleva a rede mais uma vez e continua em direção à entrada do cemitério. Observando tudo de longe e escorado no portão de ferro da entrada, encontra-se Mestre Dado. Mesmo com o clima frio daquela manhã sem sol, o rapaz vestia apenas sua famosa calça branca de capoeira. Sem camisa e fumando um cigarro exibia seu tórax perfeito.
Como que ensaiado, o cortejo parou diante do negro. Ele se dirigiu até a rede e, colocando o caibro no ombro segue ajudando a levar o corpo da Marquesa até o tumulo. Por ironia do destino quem está carregando a outra parte da rede ainda é o policial Dorgi. A lei e o submundo se uniam para a viagem final de uma travesti.

BRENDA BUBU: Olhem! O arco-íris termina no túmulo da Marquesa. – Gritando
HANNAH: Caraca Mona, isso é um sinal!
LORRAINE: No fim do arco-íris tem sempre um pote de ouro.
BRENDA BUBU: Mona, é babado! Corrinha, tu entendeu? – Puxando Corrinha pelo braço.
CORRINHA: O que? Não tô entendendo nada!
BRENDA: O sapato da Mona! O aqué que ela esconde, lembra?
CORRINHA: Sim, claro! Dona Fifia colocou os sapatos nela.
BRENDA: Vamos ver! – Corre para a rede e tenta tirar o sapato da Marquesa.
DONA FIFIA: Está louca! Já chega de tanta palhaçada. Deixem meu filho em paz que nós vamos rezar pela sua alma.
HANNAH: Dona Fifia, o aqué da Mona tá no sapato.
DONA FIFIA: Não entendo nada dessa linguagem de vocês. Por favor, nos deixem em paz! – E chorando: – Já chega! Deixem-me rezar pelo meu filho, por favor! – As pessoas se aproximam e tentam afastar o grupo de travestis de perto do corpo da Marquesa que, naquele momento, se encontra estirada na grama sobre a rede do flamengo decorada com a cara do fenômeno.
LORRAINE: Com licença, Dona Fifia! Escute-me, por favor! Sua filha trabalhou a vida inteira e guardou um dinheiro para a senhora e esse dinheiro está dentro do sapato que a senhora calçou nela. Tá me entendendo? O dinheiro é seu e ela não iria gostar que o aqué fosse enterrado e, para evitar, enviou um arco-íris como sinal. Ela era espírita Kardecista, eu juro!
BRENDA: Essa francesa é uma mentirosa de primeira.
CORRINHA: Deixe que eu vejo para a senhora Dona Fifia. – Retira um sapato e torce o salto para a direita e depois para a esquerda. O salto cede e todos vêem vários rolinhos de notas de dinheiro cair na grama ao lado da Marquesa que parece sorrir com a descoberta. Dona Fifia apanha o dinheiro. Em seguida, pega o outro sapato e descobre que nele também contêm uma boa soma de dinheiro. Coloca o dinheiro do bolso. Corrinha chega ao seu ouvido e segreda: – Deve ter bem mais no restante dos sapatos que estão debaixo da cama. Dona Fifia sorri para a velha travesti.

HANNAH: Era por isso que ela só usava sapatos meia pata, Anabela ou saltos baixos. Escondia o aqué nos grossos saltos.
LORRAINE: Aprendeu em Paris, querida!
HANNAH: Me leva, Mona!

LORRAINE: Tudo bem. Estou precisando mesmo de uma amiga para cuidar do Sarkozy.
BRENDA BUBU: Doutorado em Paris em pleno Bois de Boulogne. Arrasou Mona!
Naquele momento, o sol resolveu aparecer. A chuva sumiu e levou com ela o arco Iris. A Marquesa foi baixada ao tumulo entre gritos e vivas dos presentes. Em seguida, todos saem do cemitério da mesma forma como entraram, cantando Borbulhas de amor do Fagner.

Os artistas, sempre gesticulando muito, sem se entenderem e atônitos seguiram seus rumos. Porém, as divertidas travestis se dirigiram para a casa da Corrinha, aonde seriam presenteadas com as peças de roupas, sapatos, talvez perucas, maquiagens e principalmente bijuterias da finada Marquesa e tudo isso em ritmo de festa. Jóias falsas para Monas de Equés. Tudo á ver com esse universo tão particular.

Fim
Capítulo dedicado a todos os leitores do Ponto Zero.



Revisão de Gilberto F. Costa

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