sexta-feira, 13 de abril de 2012


O velório da Marquesa Di Fátimo – Final

De Junior Dalberto

CAPÍTULO FINAL
MÃE EUFRASIA: A viadagem tem uma energia própria. Elas estão aonde o pensamento leva, continuam sempre juntas em qualquer lugar do universo. Fazem a alegria dos orixás. Oxalá que o diga.
As pessoas começam a ficar sufocadas com tanta gente falando, fumando e rindo dentro daquele salão, onde a cada instante chegava mais visitantes. No meio da balbúrdia, Diana Fontes já imaginara uma coreografia para o momento; Dimas Carlos pensa em mudar a forma natural do cortejo, achava que a rede deveria seguir no final e o poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poderia ser cantado por todos; Isaque Galvão, louco para soltar a voz, já ensaiava alguns trinados; Civone achava que o poema deveria ser falado e não cantado; Costa Filho achava que uma chuva de pétalas de rosas e papel picado seria ideal para iniciar a saída do féretro; Lula Belmont chegou com uma garrafa de cana e todos esqueceram, por enquanto, o cortejo artístico e foram beber, mais uma vez, a defunta. Mais um carro, com uma freada brusca, pára do lado do salão de beleza e dele descem o grande fotógrafo e artista plástico Maxwel Pereira e seu assistente Bakal, trazido para Natal pelo próprio Maxwel de uma Nórdica viagem. Com requinte, o profissional fotógrafo passa a documentar tudo com seu olhar único sem perder nenhum detalhe daquele funesto acontecimento.

Finalmente, Hannah chegou com a tão aguardada rede. Colocaram um grosso caibro no meio separando os punhos. Deitaram a marquesa e cobriram-na com flores que haviam sido providenciadas pelas macumbeiras. Só então, o cortejo segue com o calçamento ainda molhado pela chuva. Quem iniciou o carregamento da rede foi o policial Dorgi, segurando na parte da frente da rede, enquanto atrás seguia a Lorraine com a ponta do caibro no seu ombro direito e no antebraço esquerdo a valise Chanel com Sarkozy.
Ambos tentavam escapar das poças de águas espalhadas pelo estragado asfalto. Em todo o trajeto, a varanda da rede arrastava suas pontas pelo chão. Alguns metros adiante foram trocando de carregadores, todos cedem à vez com parcimônia querendo participar da despedida da Marquesa. Apenas o Dorgi não deixava ninguém tomar o seu lugar. Aproveitando-se dessa situação, a travesti Hannah de Belém foi até próximo dele, seu bofescândalo, como o chamava e “se jogou”.

HANNAH: O gostoso é pra jogo? – Enquanto rodava, disfarçadamente, a coroa de flores de plástico na mão.
DORGI: Claro que sim. Sempre tem jogo comigo. Vivo na trave. 
HANNAH: Tenho fissura em tu, visse!? Quando agente pode ficar?
DORGI: Trocando o caibro de ombro para continuar segurando a rede. – Estou livre até o meio dia. Vá depois do enterro.
HANNAH: Tô toda molhadinha só de pensar. Vou mesmo, viu bofe!? Mas fique fardado, pois nunca peguei um alibã. – Dá vários pulinhos.
DORGI: Olhando para os lados. – Tudo bem, mas não dá bandeira. Deixe-me ir à frente, ok?
HANNAH: Não se preocupe, não vou falar pra ninguém, eu juro! – Leva os dois dedos indicadores, em cruz, aos lábios, como que selando a promessa e vai ficando para trás para falar com a Brenda.
HANNAH: Brenda Bubu, Mona de Deus! Consegui o Dorgi. Depois do enterro da Marquesa vou dar pra ele.
BRENDA: É ruim, hem? Ele é pura panqueca.
HANNAH: E panqueca não vira para os dois lados para não queimar, queridinha!?
BRENDA: Bi, você é o cão chupando manga.
CORRINHA: Mais atrás e ouvindo a conversa. – Poderosa! Mas vai perder a partilha das coisas da Marquesa.
HANNAH: Guarde qualquer blusinha para mim, ou aquela micro saia xadrez da Controle... A que ela usou no carnatal. Eu a acho linda, ta bem?
CARMINHA: Por mim tudo bem! Mas veja que chegou muito viado pro enterro, não sei como vamos organizar.
BRENDA: Deixa comigo, eu sei como fazer. Vamos usar a Lorraine, ela é grandona e rica, as outras respeitam as luxuosas.
LORRAINE: Será um prazer encerrar a festa!
O tempo escuro encobria um sol que, teimando em querer aparecer, foi transformando uma chuva de gotículas em um lindo arco-íris que se iniciava no céu e seguia para dentro dos muros do cemitério. De repente, Brenda Bubu não conseguiu ficar calada e iniciou a canção que a amiga Marquesa tanto a amava. 
BRENDA BUBU:
“... Tenho um coração
Bem melhor que não tivera..
.”
HANNAH, CORRINHA E LORRAINE:
“... Esse coração
Não consegue se conter ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura
...”
Algumas senhoras, inclusive a Dona Fifia, ensaiavam uma Salve Rainha. Os evangélicos começaram a entoar a famosa canção “Segura na mão de Deus”. Porém, foram engolidos pelas borbulhas de amor do Fagner, a musica preferida da finada.
Esta era cantada com emoção e diversas vezes repetida. Misturava-se às lagrimas salgadas que desciam pelos olhos das crianças, dos bêbados, das travestis, dos artistas, amigos e desconhecidos que presenciavam o estranho cortejo e se juntavam ao féretro, envolvendo-se naquela canção como se fosse cantada por uma só voz.
Quando a rede, balançando de um lado para o outro, chegou a apenas alguns metros do portão do cemitério já eram quase dez horas. Em frente ao cortejo, Mãe Eufrásia e seus acompanhantes surpreendem e assustam a todos ao se jogarem, de cara, nas sujas areias em frente ao portão do cemitério. Todo o cortejo para e silencia.
A velha macumbeira levanta-se e de joelhos, num profundo lamento, solta a voz em Yorubá, sendo acompanhada pelo seu povo. Depois, fica de pé e vai até a rede onde está a Marquesa, da um sorriso de despedida para a defunta e em seguida dirige-se à multidão justificando que a ela só seria permitido chegar até aquele lugar: a porta do cemitério. Decidida, com um gesto na mão esquerda, dá ordem para o taxista Juinão retornar com ela e seus acompanhantes para o terreiro.

A estranha procissão eleva a rede mais uma vez e continua em direção à entrada do cemitério. Observando tudo de longe e escorado no portão de ferro da entrada, encontra-se Mestre Dado. Mesmo com o clima frio daquela manhã sem sol, o rapaz vestia apenas sua famosa calça branca de capoeira. Sem camisa e fumando um cigarro exibia seu tórax perfeito.
Como que ensaiado, o cortejo parou diante do negro. Ele se dirigiu até a rede e, colocando o caibro no ombro segue ajudando a levar o corpo da Marquesa até o tumulo. Por ironia do destino quem está carregando a outra parte da rede ainda é o policial Dorgi. A lei e o submundo se uniam para a viagem final de uma travesti.

BRENDA BUBU: Olhem! O arco-íris termina no túmulo da Marquesa. – Gritando 
HANNAH: Caraca Mona, isso é um sinal!
LORRAINE: No fim do arco-íris tem sempre um pote de ouro.
BRENDA BUBU: Mona, é babado! Corrinha, tu entendeu? – Puxando Corrinha pelo braço.
CORRINHA: O que? Não tô entendendo nada!
BRENDA: O sapato da Mona! O aqué que ela esconde, lembra?
CORRINHA: Sim, claro! Dona Fifia colocou os sapatos nela.
BRENDA: Vamos ver! – Corre para a rede e tenta tirar o sapato da Marquesa. 
DONA FIFIA: Está louca! Já chega de tanta palhaçada. Deixem meu filho em paz que nós vamos rezar pela sua alma.
HANNAH: Dona Fifia, o aqué da Mona tá no sapato.
DONA FIFIA: Não entendo nada dessa linguagem de vocês. Por favor, nos deixem em paz! – E chorando: – Já chega! Deixem-me rezar pelo meu filho, por favor! – As pessoas se aproximam e tentam afastar o grupo de travestis de perto do corpo da Marquesa que, naquele momento, se encontra estirada na grama sobre a rede do flamengo decorada com a cara do fenômeno.
LORRAINE: Com licença, Dona Fifia! Escute-me, por favor! Sua filha trabalhou a vida inteira e guardou um dinheiro para a senhora e esse dinheiro está dentro do sapato que a senhora calçou nela. Tá me entendendo? O dinheiro é seu e ela não iria gostar que o aqué fosse enterrado e, para evitar, enviou um arco-íris como sinal. Ela era espírita Kardecista, eu juro!
BRENDA: Essa francesa é uma mentirosa de primeira.
CORRINHA: Deixe que eu vejo para a senhora Dona Fifia. – Retira um sapato e torce o salto para a direita e depois para a esquerda. O salto cede e todos vêem vários rolinhos de notas de dinheiro cair na grama ao lado da Marquesa que parece sorrir com a descoberta. Dona Fifia apanha o dinheiro. Em seguida, pega o outro sapato e descobre que nele também contêm uma boa soma de dinheiro. Coloca o dinheiro do bolso. Corrinha chega ao seu ouvido e segreda: – Deve ter bem mais no restante dos sapatos que estão debaixo da cama. Dona Fifia sorri para a velha travesti.

HANNAH: Era por isso que ela só usava sapatos meia pata, Anabela ou saltos baixos. Escondia o aqué nos grossos saltos.
LORRAINE: Aprendeu em Paris, querida!
HANNAH: Me leva, Mona!

LORRAINE: Tudo bem. Estou precisando mesmo de uma amiga para cuidar do Sarkozy.
BRENDA BUBU: Doutorado em Paris em pleno Bois de Boulogne. Arrasou Mona!
Naquele momento, o sol resolveu aparecer. A chuva sumiu e levou com ela o arco Iris. A Marquesa foi baixada ao tumulo entre gritos e vivas dos presentes. Em seguida, todos saem do cemitério da mesma forma como entraram, cantando Borbulhas de amor do Fagner.

Os artistas, sempre gesticulando muito, sem se entenderem e atônitos seguiram seus rumos. Porém, as divertidas travestis se dirigiram para a casa da Corrinha, aonde seriam presenteadas com as peças de roupas, sapatos, talvez perucas, maquiagens e principalmente bijuterias da finada Marquesa e tudo isso em ritmo de festa. Jóias falsas para Monas de Equés. Tudo á ver com esse universo tão particular.

Fim
Capítulo dedicado a todos os leitores do Ponto Zero.



Revisão de Gilberto F. Costa

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