O velório da Marquesa Di Fátimo – Final
De Junior Dalberto
CAPÍTULO FINAL
MÃE EUFRASIA: A viadagem tem uma energia própria. Elas estão aonde o pensamento leva, continuam sempre juntas em qualquer lugar do universo. Fazem a alegria dos orixás. Oxalá que o diga.
As pessoas começam a ficar sufocadas com tanta gente falando, fumando e rindo dentro daquele salão, onde a cada instante chegava mais visitantes. No meio da balbúrdia, Diana Fontes já imaginara uma coreografia para o momento; Dimas Carlos pensa em mudar a forma natural do cortejo, achava que a rede deveria seguir no final e o poema Morte e vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, poderia ser cantado por todos; Isaque Galvão, louco para soltar a voz, já ensaiava alguns trinados; Civone achava que o poema deveria ser falado e não cantado; Costa Filho achava que uma chuva de pétalas de rosas e papel picado seria ideal para iniciar a saída do féretro; Lula Belmont chegou com uma garrafa de cana e todos esqueceram, por enquanto, o cortejo artístico e foram beber, mais uma vez, a defunta. Mais um carro, com uma freada brusca, pára do lado do salão de beleza e dele descem o grande fotógrafo e artista plástico Maxwel Pereira e seu assistente Bakal, trazido para Natal pelo próprio Maxwel de uma Nórdica viagem. Com requinte, o profissional fotógrafo passa a documentar tudo com seu olhar único sem perder nenhum detalhe daquele funesto acontecimento.
Finalmente, Hannah chegou com a tão aguardada rede. Colocaram um grosso caibro no meio separando os punhos. Deitaram a marquesa e cobriram-na com flores que haviam sido providenciadas pelas macumbeiras. Só então, o cortejo segue com o calçamento ainda molhado pela chuva. Quem iniciou o carregamento da rede foi o policial Dorgi, segurando na parte da frente da rede, enquanto atrás seguia a Lorraine com a ponta do caibro no seu ombro direito e no antebraço esquerdo a valise Chanel com Sarkozy.
Ambos tentavam escapar das poças de águas espalhadas pelo estragado asfalto. Em todo o trajeto, a varanda da rede arrastava suas pontas pelo chão. Alguns metros adiante foram trocando de carregadores, todos cedem à vez com parcimônia querendo participar da despedida da Marquesa. Apenas o Dorgi não deixava ninguém tomar o seu lugar. Aproveitando-se dessa situação, a travesti Hannah de Belém foi até próximo dele, seu bofescândalo, como o chamava e “se jogou”.
HANNAH: O gostoso é pra jogo? – Enquanto rodava, disfarçadamente, a coroa de flores de plástico na mão.
DORGI: Claro que sim. Sempre tem jogo comigo. Vivo na trave.
HANNAH: Tenho fissura em tu, visse!? Quando agente pode ficar?
DORGI: Trocando o caibro de ombro para continuar segurando a rede. – Estou livre até o meio dia. Vá depois do enterro.
HANNAH: Tô toda molhadinha só de pensar. Vou mesmo, viu bofe!? Mas fique fardado, pois nunca peguei um alibã. – Dá vários pulinhos.
DORGI: Olhando para os lados. – Tudo bem, mas não dá bandeira. Deixe-me ir à frente, ok?
HANNAH: Não se preocupe, não vou falar pra ninguém, eu juro! – Leva os dois dedos indicadores, em cruz, aos lábios, como que selando a promessa e vai ficando para trás para falar com a Brenda.
HANNAH: Brenda Bubu, Mona de Deus! Consegui o Dorgi. Depois do enterro da Marquesa vou dar pra ele.
BRENDA: É ruim, hem? Ele é pura panqueca.
HANNAH: E panqueca não vira para os dois lados para não queimar, queridinha!?
BRENDA: Bi, você é o cão chupando manga.
CORRINHA: Mais atrás e ouvindo a conversa. – Poderosa! Mas vai perder a partilha das coisas da Marquesa.
HANNAH: Guarde qualquer blusinha para mim, ou aquela micro saia xadrez da Controle... A que ela usou no carnatal. Eu a acho linda, ta bem?
CARMINHA: Por mim tudo bem! Mas veja que chegou muito viado pro enterro, não sei como vamos organizar.
BRENDA: Deixa comigo, eu sei como fazer. Vamos usar a Lorraine, ela é grandona e rica, as outras respeitam as luxuosas.
LORRAINE: Será um prazer encerrar a festa!
O tempo escuro encobria um sol que, teimando em querer aparecer, foi transformando uma chuva de gotículas em um lindo arco-íris que se iniciava no céu e seguia para dentro dos muros do cemitério. De repente, Brenda Bubu não conseguiu ficar calada e iniciou a canção que a amiga Marquesa tanto a amava.
BRENDA BUBU:
“... Tenho um coração
Bem melhor que não tivera...”
Bem melhor que não tivera...”
HANNAH, CORRINHA E LORRAINE:
“... Esse coração
Não consegue se conter ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura...”
Não consegue se conter ao ouvir tua voz
Pobre coração
Sempre escravo da ternura...”
Algumas senhoras, inclusive a Dona Fifia, ensaiavam uma Salve Rainha. Os evangélicos começaram a entoar a famosa canção “Segura na mão de Deus”. Porém, foram engolidos pelas borbulhas de amor do Fagner, a musica preferida da finada.
Esta era cantada com emoção e diversas vezes repetida. Misturava-se às lagrimas salgadas que desciam pelos olhos das crianças, dos bêbados, das travestis, dos artistas, amigos e desconhecidos que presenciavam o estranho cortejo e se juntavam ao féretro, envolvendo-se naquela canção como se fosse cantada por uma só voz.
Quando a rede, balançando de um lado para o outro, chegou a apenas alguns metros do portão do cemitério já eram quase dez horas. Em frente ao cortejo, Mãe Eufrásia e seus acompanhantes surpreendem e assustam a todos ao se jogarem, de cara, nas sujas areias em frente ao portão do cemitério. Todo o cortejo para e silencia.
A velha macumbeira levanta-se e de joelhos, num profundo lamento, solta a voz em Yorubá, sendo acompanhada pelo seu povo. Depois, fica de pé e vai até a rede onde está a Marquesa, da um sorriso de despedida para a defunta e em seguida dirige-se à multidão justificando que a ela só seria permitido chegar até aquele lugar: a porta do cemitério. Decidida, com um gesto na mão esquerda, dá ordem para o taxista Juinão retornar com ela e seus acompanhantes para o terreiro.
A estranha procissão eleva a rede mais uma vez e continua em direção à entrada do cemitério. Observando tudo de longe e escorado no portão de ferro da entrada, encontra-se Mestre Dado. Mesmo com o clima frio daquela manhã sem sol, o rapaz vestia apenas sua famosa calça branca de capoeira. Sem camisa e fumando um cigarro exibia seu tórax perfeito.
Como que ensaiado, o cortejo parou diante do negro. Ele se dirigiu até a rede e, colocando o caibro no ombro segue ajudando a levar o corpo da Marquesa até o tumulo. Por ironia do destino quem está carregando a outra parte da rede ainda é o policial Dorgi. A lei e o submundo se uniam para a viagem final de uma travesti.
BRENDA BUBU: Olhem! O arco-íris termina no túmulo da Marquesa. – Gritando
HANNAH: Caraca Mona, isso é um sinal!
LORRAINE: No fim do arco-íris tem sempre um pote de ouro.
BRENDA BUBU: Mona, é babado! Corrinha, tu entendeu? – Puxando Corrinha pelo braço.
CORRINHA: O que? Não tô entendendo nada!
BRENDA: O sapato da Mona! O aqué que ela esconde, lembra?
CORRINHA: Sim, claro! Dona Fifia colocou os sapatos nela.
BRENDA: Vamos ver! – Corre para a rede e tenta tirar o sapato da Marquesa.
DONA FIFIA: Está louca! Já chega de tanta palhaçada. Deixem meu filho em paz que nós vamos rezar pela sua alma.
HANNAH: Dona Fifia, o aqué da Mona tá no sapato.
DONA FIFIA: Não entendo nada dessa linguagem de vocês. Por favor, nos deixem em paz! – E chorando: – Já chega! Deixem-me rezar pelo meu filho, por favor! – As pessoas se aproximam e tentam afastar o grupo de travestis de perto do corpo da Marquesa que, naquele momento, se encontra estirada na grama sobre a rede do flamengo decorada com a cara do fenômeno.
LORRAINE: Com licença, Dona Fifia! Escute-me, por favor! Sua filha trabalhou a vida inteira e guardou um dinheiro para a senhora e esse dinheiro está dentro do sapato que a senhora calçou nela. Tá me entendendo? O dinheiro é seu e ela não iria gostar que o aqué fosse enterrado e, para evitar, enviou um arco-íris como sinal. Ela era espírita Kardecista, eu juro!
BRENDA: Essa francesa é uma mentirosa de primeira.
CORRINHA: Deixe que eu vejo para a senhora Dona Fifia. – Retira um sapato e torce o salto para a direita e depois para a esquerda. O salto cede e todos vêem vários rolinhos de notas de dinheiro cair na grama ao lado da Marquesa que parece sorrir com a descoberta. Dona Fifia apanha o dinheiro. Em seguida, pega o outro sapato e descobre que nele também contêm uma boa soma de dinheiro. Coloca o dinheiro do bolso. Corrinha chega ao seu ouvido e segreda: – Deve ter bem mais no restante dos sapatos que estão debaixo da cama. Dona Fifia sorri para a velha travesti.
HANNAH: Era por isso que ela só usava sapatos meia pata, Anabela ou saltos baixos. Escondia o aqué nos grossos saltos.
LORRAINE: Aprendeu em Paris, querida!
HANNAH: Me leva, Mona!
LORRAINE: Tudo bem. Estou precisando mesmo de uma amiga para cuidar do Sarkozy.
BRENDA BUBU: Doutorado em Paris em pleno Bois de Boulogne. Arrasou Mona!
Naquele momento, o sol resolveu aparecer. A chuva sumiu e levou com ela o arco Iris. A Marquesa foi baixada ao tumulo entre gritos e vivas dos presentes. Em seguida, todos saem do cemitério da mesma forma como entraram, cantando Borbulhas de amor do Fagner.
Os artistas, sempre gesticulando muito, sem se entenderem e atônitos seguiram seus rumos. Porém, as divertidas travestis se dirigiram para a casa da Corrinha, aonde seriam presenteadas com as peças de roupas, sapatos, talvez perucas, maquiagens e principalmente bijuterias da finada Marquesa e tudo isso em ritmo de festa. Jóias falsas para Monas de Equés. Tudo á ver com esse universo tão particular.
Fim
Capítulo dedicado a todos os leitores do Ponto Zero.
Revisão de Gilberto F. Costa
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