sexta-feira, 13 de abril de 2012


A Barca de Caronte - Capítulo Final


O NAUFRÁGIO DE LEONARDO DEIXOU O CAPÍTULO ANTERIOR COM SABOR DE AGUA SALGADA E POR ALGUM TEMPO TIROU A ATENÇÃO DO LUGAR ONDE OS PERSONAGENS SE ENCONTRAVAM. DE REPENTE, UM CORPO QUE CAI!!! SUICIDIO OU ACIDENTE? VEJA O QUE LHE RESERVA ESSE FINAL DE HISTÓRIA

FINAL

LEONARDO: (Continuando a narração do seu naufrágio) Por um momento a chuva passou. Algumas vezes íamos de encontro a outro náufrago; eu achava que era um peixe grande, talvez um tubarão, e ficava esperando a mordida. A água estava morna; engoli, sem querer, alguns goles salgados... Esquecia a boca aberta. Ney rezava sem parar; dizia a Deus que, se escapasse, seria uma pessoa melhor; eu prometi deixar de fumar a partir daquele instante.

Em meio ao pesadelo tranquilizei-me totalmente, porém, não soltei a garrafa plástica; relaxei minha mente; acho que atingi o que tantos budistas buscam. Senti que um entorpecimento tomou conta do meu corpo; achei que estava morrendo. Algo muito doce, exageradamente doce, tomou conta de mim. Sabe quando você come um doce e repete? E novamente repete até enjoar? Até ficar com uma insuportável sensação de enjôo?

Foi o que senti. Contudo, ao contrário, não ficou nada insuportável, ficou agradável. Senti o meu corpo se desprendendo de mim, mas não era nada dolorido ou traumático, era gostoso. Fiquei durantes alguns momentos me vendo de cima, parecia que eu estava no alto e vendo-me agarrado ao garrafão e ao meu amigo Ney lutando, ambos, pela vida. Essa sensação pareceu durar horas. Fui interrompido por alguém que me agarrava por trás e gritava para que eu soltasse o garrafão, pois estava tudo bem. Eu não entendia nada, só queria continuar lá em cima com aquela sensação boa que me invadira há alguns instantes.

De repente, me vi dentro de um daqueles botes salva-vidas, infláveis, juntamente com três homens, Ney e duas das meninas. Eles me perguntavam alguma coisa, mas as vozes estavam muito distantes. Um torpor invadiu o meu corpo e desmaiei; acordei dentro de um rebocador da Petrobrás de nome Rondon que, por acaso, naqueles dias, exatamente no horário do nosso naufrágio, estava passando próximo, transportando uma plataforma de Recife para Fortaleza.

O rebocador cruzava nosso caminho quando um dos tripulantes – ajudado pela cor laranja dos coletes salva-vidas - conseguiu enxergar uma das meninas no momento em que o refletor do rebocador passou a luz sobre ela no mar. Milagre! Aquele não era nosso dia; todos foram salvos; na euforia esqueci minha promessa; pedi um cigarro a um marinheiro. Foi a tragada mais gostosa da vida. Doce pecado.


O rebocador mudou o curso e levou-nos até próximo a Natal onde um barco menor, da capitania dos portos, nos conduziu para a terra firme.  O tempo que fiquei naufragado no mar não durou meia hora, mas pareceu uma noite interminável. Fiquei muito tempo me perguntando o que foi aquela sensação tão fantástica que senti quando estava no mar.

Perguntei a vários religiosos, mas ninguém soube explicar; muitos tentavam me fazer acreditar que seria efeito de bebida alcoólica ou do trauma da morte próxima, mas sei que não foi. Hoje, já não me preocupo com isso; acredito que, naquele dia, morri durante algum momento. Entretanto, aqui, não sinto nada parecido, portanto ou estou sonhando, ou estou no sonho de alguém.
                     
RIANA: Sua história é forte, mas estou com muito frio. Meu corpo todo está doendo...  vou ficar deitada aqui mesmo. Estou sem forças até para levantar.

JÚLIO: Eu, ao contrário, estou com muito calor, parece até que tenho febre. Nossa! Parece que minha cabeça está fervendo.

LEONARDO:  Eu também sinto o meu estomago fervendo e minha boca está seca. Nossa, que calor! Está assando.

RIANA: Devo estar morrendo; minhas mãos estão um gelo. Vejam! Sintam! Meu Deus, o que e isso? (Chora) É angustiante! Estou toda gelada e não consigo me movimentar.

LEONARDO:   Calma, senhora! Calma! Vou lhe abraçar. Talvez a minha febre lhe esquente. Venha também Júlio, talvez assim ela melhore.

JÚLIO: Ok! Meu Deus, ela está gelada!

RIANA: Obrigada! Estou muito cansada... Preciso descansar.

JÚLIO: Tente dormir! Irá acordar bem melhor, você vai ver. Durma!

LEONARDO:  Acho que ela dormiu... ou morreu? O que será isso tudo? Não entendo mais nada.

JÚLIO:         Nem eu, nem eu... (Toca no pulso de Riana e assusta-se) Meu Deus, ela está gelada! Acho que está morta, mesmo!

LEONARDO:  Agora só falta aparecer Caronte para levar o corpo.

JÚLIO: Que loucura é essa, meu Deus? (Levanta-se e caminha em direção ao Aqueronte)

LEONARDO:  Caronte! (Gritando) Venha logo, seu demônio dos infernos. Queremos atravessar o Aqueronte... Venha... Venha... (Grita desesperado, repetidas vezes)

JÚLIO:         Será!!!!

O barulho da queda foi seco e forte. Quem se encontrava a uma distancia de até 200 metros voltou-se, instintivamente, para a fachada do edifício Grécia na Avenida Consolação, 6163, na esquina com a Paulista onde um corpo ainda estremecia durante alguns segundos para depois ficar inerte no meio da rua. Suicídio ou acidente? Repetem entre si as pessoas que foram atraídas pelo barulho da queda de um corpo do alto do 18º andar. Algumas direcionavam o olhar para o alto do edifício, outras para o corpo da infeliz criatura largada ao chão de cimento. Logo, várias câmeras de celulares começam a filmar e fotografar o corpo que a garoa fina insistia em molhar e esfriar naquela calçada em pleno centro de São Paulo.

Garoava desde cedo e, naquele final de tarde, a chuva fininha levava o sangue vermelho que saia pelos ferimentos da cabeça da vítima e escorria, como um fino rio vermelho, pelas calçadas em direção ao meio-fio do calçamento. Carros tentam parar e motoristas erguem os pescoços dentro dos veículos, mas o buzinaço que se inicia afasta a curiosidade, e o trânsito, caótico, volta a fluir na Consolação.

Do edifício Grécia dois homens saem correndo e um terceiro permanece na portaria como que vigiando a entrada. A chuva começa a engrossar. A pequena multidão cerca o cadáver e várias pessoas, munidas de celulares, fotografam o corpo sem vida e molhado. Um travesti, com uma voz afetada, comenta: “A calcinha é Du Loren, coisa chic.” Todos riem e, sem se importarem com a chuva, continuam com o burburinho. Ninguém se afasta. Os dois homens que saíram do edifício Grécia conseguem passar pelo meio da multidão e, abaixados diante do corpo, começam a falar.

JÚLIO: É uma mulher!

LEONARDO: Caronte, o nosso porteiro, já ligou para a Polícia.

JÚLIO: Eu vi o corpo passando pela minha janela, foi horrível a sensação.

LEONARDO:  Eu ouvi o barulho, um baque surdo, como se um saco de cimento fosse jogado do alto. Acho que fomos os primeiros a descer do prédio. (Olha em torno. A multidão começa a dissolver-se)

JÚLIO: Será que ela ainda está viva? 

LEONARDO: Deixe-me ver... (Verificando o pulso) Acho que está morta.

JÚLIO: Você a conhecia?

LEONARDO:  Já a havia visto, no prédio.

JÚLIO: Eu também a encontrei algumas vezes no elevador. Sempre ficava me paquerando. Caronte comentou que o nome dela é Riana. Disse também que ela vivia de prostituição.

LEONARDO:  Fala sério, meu! Com essa idade? Acho que nem drogado eu encarava.

JÚLIO: É, coitada! Agora não faz mais nada. Vou subir e ver se consigo um lençol para cobrir o cadáver. Sabe como é, o ITEP demora um tempão para vim buscar.

LEONARDO:  Vá lá! Aproveite e veja se consegue uma vela. Eu ficarei aqui com ela lhe esperando, enquanto isso rezarei um Pai-Nosso.



A chuva continua lavando a calçada e levando o sangue da mulher ladeira abaixo. As últimas pessoas, satisfeitas da curiosidade, retornam à parada de ônibus. A chuva pára. Surge uma lua cheia e clara desafiando o sol que, pálido, vai se despedindo por trás das nuvens dispersas do final da tarde.

O rapaz acende um cigarro e reza sozinho diante do corpo.


FIM

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