sexta-feira, 13 de abril de 2012


A Barca de Caronte

 

Início

Das estalactites que cresciam no alto do cume da caverna, acompanhando o passar dos séculos, escorriam, lentamente, do teto da enorme e mal iluminada gruta, pingos vaporosos de água quente como se fossem preguiçosas e intermináveis cascatas. Alguns evaporavam antes de chegarem ao seu destino.

 

No chão, uma branca e fina mão de alguém de meia idade era de uma mulher magra, quase esquelética. Estava deitada no chão lodoso e em posição fetal. Vestia, além de uma velha camiseta surrada, branca, masculina, tendo como estampa a língua, símbolo dos Rolling Stones, já bem descolorida, uma calcinha branca, suja de terra e lama do insalubre, esfumaçado e calorento lugar. Parecia desmaiada e insensível para a mancha rosácea de queimadura que se formava na sua mão esquerda que se encontrava estendida com o indicador apontando para algum lugar.


Uma dezena de morcegos dependurados em outras estalactites que se encontravam secas, com olhos amarelados, mas bem abertos, acompanhavam, absortos, o pingar das gotas.

Ao longe, se ouvia, de forma repetida e monocórdia, o som de remadas suaves; remos que, firmes, cortavam algum trecho d’água. Parecia aproximar-se, mui lentamente, algum barco.


Não se conseguia entender se era noite ou dia. Luzes surgiam e desapareciam como se fossem relâmpagos; algumas vezes brancas e bem iluminadas como procedentes de um farol as quais, do fim de um estranho lugar, apontavam um caminho; outras vezes douradas ou azuis, como raios solares ou lunares, vindas do cume da caverna através de frestas. Porém, o que permanecia iluminando o ambiente era o reflexo vermelho e dourado das águas borbulhantes do rio de fogo que circulava aquele lugar, onde o odor que se sentia era a mistura do fedor de amônia, urina e fumaça de carvão queimado.

À direita da adormecida mulher, um senhor de seus cinquenta anos estava parado, sentado na terra úmida e vestido com um pijama de seda verde. Tinha um olhar catatônico diante daquela visão infernal que prendia seu olhar.

Vapores com lufadas abrasadoras invadiam, de vez em quando, o lugar. Vinham de todas as direções e, sem pedir licença, chegavam invadindo as narinas, ferindo os dutos nasais como se fossem agulhas ou pregos gigantescos enfiados cérebro adentro, em direção às pupilas. A sensação era como se tivesse sentindo dores insuportáveis e a visão parecia estar cheia de luzes prateadas piscando confusamente.

Julio, era esse o seu nome, continuava com seu olhar preso a estalactite de onde escorriam gotas sobre a mão de Riana. Condoído, pensava em levantar-se e fazer algo, acordá-la talvez, mas, sem forças, continuava como que preso ao chão, inerte, mal conseguindo respirar aquela mistura de ar, fumaça e amônia. Sua cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento. Com uma dor terrível e a sensação provocada pelas luzes que não paravam de piscar, pensava estar perdendo a sanidade em meio a tanta dor e loucura.

Mais atrás, uns dois metros de onde ele se encontrava, via-se um jovem bonito, alto e moreno. Possuía um rosto quadrado, seus cabelos eram negros, crespos e úmidos; vestia-se, apenas, com uma camiseta regata e cueca branca. Achava-se com um olhar perdido e direcionado para além de dois rochedos de cor cinza. Eram dois magníficos e imponentes monólitos de aproximadamente cinco metros de altura e um metro de circunferência. Ambos eram totalmente idênticos e lembravam fálicos picos. 

Eram duas lisas e gigantes estalagmites separadas por um rio sulfuroso de águas quentes e vermelhas que, borbulhando, elevava a temperatura do ambiente entorpecendo seus habitantes e lhes roubando a vontade de, até pensar, quanto mais de levantar-se. “Com certeza, é um efeito de uma droga muito pesada.” Pensava, desconsolado, o aturdido Leonardo, sem conseguir sequer fechar os olhos. Incômodas gotas de suor escorriam da sua cabeça pela nuca seguindo pelo grosso pescoço, pelas costas e peito em direção ao chão úmido da caverna. Obedecendo a ordem natural da gravidade provocavam, ao escorrerem pelo ânus, ardores entre as nádegas.


De repente, são interrompidos por um gemido sofrido, gutural, acompanhado de um esforço que é sentido por todos.

A mulher levanta, lentamente, o corpo do chão e leva, instintivamente, sua mão, avermelhada pelas queimaduras, aos lábios.

RIANA: Caralho! Puta que pariu! Estou queimando.

Uma voz, quase inaudível, surge em seguida, como resposta:

JÚLIO: Alguém sabe onde estamos?

Quebrando também o silêncio outra voz, mais jovem, reverbera entre as paredes.

LEONARDO:    Não tenho nem idéia. Parece um sonho, um pesadelo, talvez.

RIANA: (Levantando-se com bastante esforço, pára de olhar a mão e começa a observar o lugar) No inferno, suponho. Que lugar horrível é esse? E essa fumaça? Deus do céu! Parece que vai me cozinhar por dentro. Nossa, que horror! (E tosse, engasgada).

  
O rapaz, que agora também se encontra de pé, caminha até as rochas gêmeas, toca-as com as mãos e, como que estivesse tocado em brasas, tira-as de imediato. Chuta um pedregulho que, sem fazer barulho, cai nas águas quentes do rio borbulhante. Em seguida fala:

LEONARDO:    Acho que não é o inferno, pois não o imagino assim. Vejam! Tem um cadáver passando semi submerso. Estão vendo? (Aponta o dedo). Ali parece um esqueleto queimando, ainda tem fumaça nos cabelos. Olha lá uma porta! Caralho, que porra é isso!? Deve ser o inferno sim, mas falta algo!


Acordando do estado catatônico em que se encontrava, o senhor resolve participar da conversa. Desenvolve, entre todos, naquele ambiente estranho o seguinte dialogo:

JÚLIO: (Irritado) O que esperavas? O capeta, em pessoa, nos recebendo?

RIANA: Seria muita honra. (Balançando a cabeça tentando colocar as idéias no lugar) Acho que sou eu que estou sonhando.

LEONARDO:    (Desesperado) E o que eu faço no seu sonho?

JÚLIO: Não é sonho, acreditem. Acho que estamos todos mortos. Perdemos nosso julgamento e já estamos no inferno. Eu sempre imaginei o inferno assim, com esse cheiro de amônia.

RIANA: Você, querido! Então, se esse for o seu inferno, o sonho é todo seu. Vamos, liberte-me desse seu pesadelo. (Pega no braço de Julio que se afasta com um safanão).

LEONARDO: Isso, ela ta certa. Vamos, acorde. (Pegando, também, no braço de Julio e aos gritos) Quero voltar para minha cama.

JULIO: Se eu soubesse como, faria imediatamente. (Senta no chão procurando algo nos bolsos).

LEONARDO: (Alheio, caminha entre os dois.) Acho que, realmente, estou morto. Lembro do acidente, claro que lembro. Foi foda... Uma pancada do caralho, mas o estranho e que não sinto nada, dor nenhuma... Mas, porque estou de cueca e camiseta? Devo estar dormindo ainda... Belisca-me! Vai cara! Caralho, esse doeu!  Logo mais vou acordar e tudo vai estar igual como quando sai de casa pela manhã. Não estou morto coisa nenhuma, pois sinto o meu corpo inteiro, dedos, pés (Se toca). Estranho, que loucura é essa? Quando fico nervoso me dá vontade de fazer xixi, merda!

RIANA: (Sentada, novamente, próxima do lugar onde caíam as gotas das estalactites, porém, afastando-se delas) Vá ali, atrás daquela pedra e alivie-se. É realmente tudo muito esquisito. Esse lugar, vocês. A minha última lembrança foi quando cai do parapeito do prédio, mas também não sinto nada, dor nenhuma, nenhum osso quebrado... consigo até andar. E cadê a porra da maldita pomba que tentei salvar? Deve ter voado... filha da puta mal agradecida. Me fodi todinha por ela e ela nem aí. E como tudo nessa merda de vida, gratidão never. Mas... como conseguiu voar se estava toda molhada? Que merda é essa que estou falando? Quem se importa! (Levanta-se e dar umas passadas) Mas, que lugar é esse, meu Deus? E quem são vocês?


JÚLIO: (Estendendo a mão e apresentando-se) Julio Silveira, piloto comercial. Bom, pelo menos era.

LEONARDO:    Eu sou Leonardo Esteban, meio espanhol, arquiteto, web designer, astrólogo, DJ, promoter, ex-reality show, bissexual e cantor nas horas vagas. E você?

RIANA: Riana Santos, atendimento corporal a domicilio, puta.

JÚLIO: Caralho! Com essas criaturas, se não é o inferno, estou no meio do caminho.

RIANA: Do caminho do nada, já falei. Estamos todos em um sonho, o meu sonho.


LEONARDO:    É muita pretensão sua. Porque não seria o meu sonho? Ou o dele?

RIANA: Porque eu sinto isso, e mulher tem essa coisa de intuição.

JÚLIO: Sonho? Que nada. Estamos mesmo é numa merda grande.

LEONARDO: Vocês são pessimistas. Tem um rio aqui. Água é limpeza, purificação. Acho que isso é meio Caverna do Dragão, lembram? Claro que não lembram. Impossível, são bem mais velhos que eu. Acho que logo, mas bem logo, aparecerá algo ou alguém para explicar. (Ele fica de pé. Sempre olhando para o fundo do lugar, caminha até o rio sulfuroso).


CONTINUA...

REVISÃO: Gilberto Costa

QUEM SÃO ESSAS CRIATURAS? ONDE ESTÃO? VIVOS OU MORTOS, SONHANDO OU ACORDADOS?  ENCONTRE RESPOSTAS NOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS DA “BARCA DE CARONTE

Nenhum comentário:

Postar um comentário

Observação: somente um membro deste blog pode postar um comentário.