sexta-feira, 13 de abril de 2012


A Barca de Caronte - 3º Capítulo

NO CAPÍTULO ANTERIOR OS PERSONAGENS VIVERAM UMA GRANDE INQUIETUDE. AGORA, ELES SE DESESPERAM AO OUVIREM SONS INFERNAIS DE LATIDOS E UIVOS DE CÃES.


                                          3º CAPÍTULO

JÚLIO: Estamos realmente a caminho do inferno. (Desespera-se) Eu não mereço isso! Isso não. Nunca, meu Deus! (Chora) Sempre fui legal com todos. (De pé e falando para si começa a girar em círculo)

LEONARDO: Então, Dante era um visionário?


RIANA: Tomara que não, pois morro de medo de cães. Imagine... Ter que encarar um com três cabeças? (Chora desesperada)

LEONARDO:    Estamos mesmo mortos, mas não sinto nada, nenhuma sensação, nem dor, nem tristeza... Nada.

JÚLIO: Eu sinto uma saudade enorme do meu cachorro. Um pastor alemão - Cuzsco é o nome dele. (Chora sentado com o rosto entre os joelhos. Ninguém parece se importar)

RIANA: Odeio animais. Só nos dão despesas e trabalho. Ter que limpar xixi e apanhar merda. Cães babam, deixam pelos nos tapetes, no sofá, por toda a casa. Acho uma loucura cuidar de bicho. Quando pulei do prédio havia uma pomba no parapeito. Chovia muito e ela estava toda molhada. O olhar dela era de tristeza, desespero ou fome, sei lá. Angústia, talvez. Um horror. Quase a peguei para pular agarrada comigo. Queria livrá-la daquele olhar de tristeza. Se eu tivesse feito o que pensei acho que agora ela estaria ali, feliz, nos observando daquela pedra e, talvez, bem melhor do que quando estava viva.

JÚLIO: Você é muito amarga.

RIANA: A vida para mim nunca foi doce, querido! Nunca andei de poscher. A única vez que andei de táxi, em Sampa, foi quando levei um peito de minha mãe, após uma cirurgia de mastectomia, para o médico fazer uma biópsia e, acreditem, a sensação de levar um pedaço de alguém em uma caixa de isopor, sacolejando dentro de um táxi, não e nada confortável, ainda mais sendo de sua mãe. Faz um barulho estranho, dói na alma.


Enquanto Riana falava, uma lufada de ar quente invade, novamente, o ambiente. A luz que surgia do fundo da caverna como se viesse de um farol, anunciando um rochedo em alto mar, voltou de repente e muito forte. Todos cobrem os olhos com as mãos. Os latidos dos cães se aproximam. As remadas param. Os três se aproximam e, juntos, deixam-se cair lentamente, unidos e escorados um ao outro pelas costas, formando, com seus corpos, um triângulo. Não sabiam por que, mas sentiam-se mais confortáveis dessa maneira. Era como se autoprotegessem.  Mais uma vez Leonardo rompe o silêncio.

LEONARDO:    E depois?

RIANA: Ela ainda durou 23 dias. Antes mesmo de sair o resultado da biópsia o câncer evoluiu assustadoramente e ela me deixou sem sequer despedir-se. Acho que se deixou levar. Isso pra mim foi uma puta sacanagem... Deixou-me sozinha nesse inferno que é São Paulo. Eu ainda era menor de idade, quinze anos apenas. Foi uma barra segurar a onda. Abandonei-a no hospital assim que soube de sua morte e sai dali correndo. Não sei o que fizeram com o corpo. Passei dois dias fora de casa dormindo pela Avenida São João, embaixo da marquise de uma igreja evangélica junto com uma galera de rua. Não comi nem bebi nada durante esses dois dias. Apenas me droguei bastante. Não chorei uma lágrima sequer. Estava revoltada com tudo, com ela, com Deus, com o “caralho” do mundo. Eu estava só, seca, como um saco de plástico que havia sido largado aos quatro ventos, girando sem rumo, vazio, tão vazio e perdido quanto estou me sentindo agora.


Quando Riana acaba de falar, o ambiente escurece totalmente durante alguns segundos. Assustadoramente, o som das remadas passa bem próximo. O latido do cão parece anunciar a sua chegada. Mas, logo depois, as remadas vão distanciando-se e a tênue luz vermelha, vinda das águas borbulhantes do rio, volta a iluminar o ambiente.

RIANA: (Levantando-se) Faria qualquer coisa por um cigarro.

LEONARDO: Acho que Caronte está indo embora... As remadas estão se afastando. (Caminha até as pedras e tenta enxergar algo na continuação do rio. Desolado, volta a sentar-se no chão da caverna)

RIANA: Voltamos ao ponto de início.

JÚLIO: Acham que isso é estar morta?

LEONARDO:    Claro que não! Se ela estivesse morta sua mãe estaria aqui para recebê-la.

RIANA: É ruim, hem! Ela deve ta fugindo de mim. Se bem que eu gostaria de encontrá-la, cara a cara.

LEONARDO: Eu estou muito cansado, não consigo respirar direito. Parece que o tempo passa muito rápido por aqui. É tudo muito opressivo, o ar está pesado... Ou estou enganado?

JÚLIO: Não. Você está certo! Estou sentindo um cansaço nas pernas. Acho que vou deitar-me ali, perto da pedra. Aqui está muito frio.

RIANA: Eu também estou muito cansada... Acho que vou descansar. 

LEONARDO: Engraçado! Olhando daqui, na direção daquelas frestas, estou vendo estrelas. Se isso aqui é a porta do inferno como posso estar vendo o céu?

RIANA: É o firmamento.

LEONARDO: Então, se estamos vendo o firmamento é porque estamos em algum lugar na terra.

JÚLIO: Ou sonhando com ele.

RIANA: Ele? Quem?

JÚLIO: O firmamento.

LEONARDO: Quanta bobagem. Até parece que estamos drogados, viajando.

JÚLIO: Lembrou-me bastante uma situação que vivi em Rio Branco, no Acre.

LEONARDO:    Já sei. Tomou o Daime?

JÚLIO: Tomei.

LEONARDO:    E ai? Como foi o barato?

RIANA: Quando estava viva experimentei de tudo, menos o Daime.

JÚLIO: Gente foi pra lá de bom, uma lição de vida.

RIANA: Chega dessas pieguices e fala logo qual é o barato.

JÚLIO: Bem, eu estava numa folga de uma viagem em que pilotei de Brasília a Rio Branco. No voo havia uma comissária chamada Malu... Ela era uma gata.

RIANA: Já sei! Você a comia e etc. etc.

LEONARDO:    Conte logo, estou ansioso.

JÚLIO: Acho que, aqui onde estamos, temos bastante tempo.

RIANA: Todo o tempo do mundo.

Pelas frestas, do alto da caverna, começam a aparecer pequenos raios dourados de sol. A caverna começa a ficar um pouco mais iluminada, porem seus ocupantes sequer notam essa mudança.

JÚLIO: Pois é. Eu e a Malu resolvemos experimentar o daime. Andamos pela pequena e verde cidade procurando informações junto ao Povo da Floresta, como se autodenominam os acreanos. Mas ninguém queria falar nada, parecia um grande segredo. Estávamos em um bairro chamado Gameleira. Para vocês que não conhecem, eu o descrevo. Gameleira é lugar bem simpático, localizado à margem do rio Acre, com centenas de casa de madeira, algumas do início da colonização. Tem até um teatro todo de madeira, tudo bem conservado. Às margens do rio existem frondosas arvores que sombreiam bancos de madeira para as pessoas descansarem. É um lugar bem bucólico no norte do país. Bom, estávamos nesse lugar quando conhecemos um motorista de táxi de uma cidade chamada Fortaleza do Abunã, em Rondônia, onde, segundo ele, existe a cachoeira mais bonita com o rio mais veloz do Brasil. Fica na fronteira com a Bolívia. Depois de muita conversa e um precinho camarada ele nos levou a um dos templos do daime. Existem vários, mas todos afastados do centro da cidade.


LEONARDO: Então, não é uma coisa comum? Assim como são as igrejas?

JÚLIO: É, e não é.

RIANA: Não entendi!

JÚLIO: Bem, segundo o motorista, nem todos os caminhos levam ao daime, porém, se você for escolhido, o daime lhe mostra o caminho.

LEONARDO:    Interessante!

RIANA: Bobagem! Mas, e então? Quero saber do babado. O que você sentiu?

JÚLIO: Deixe-me contar do meu jeito, senão vou confundir tudo, ok?

LEONARDO:    Tudo bem, vá lá.







Continua...

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