sexta-feira, 13 de abril de 2012


A Barca de Caronte - 5º Capítulo

APÓS UMA NARRAÇÃO DE JÚLIO SOBRE A SUA EXPERIÊNCIA AO TOMAR O CHÁ DO SANTO DAIME E SEUS EFEITOS ALUCINANTES - QUANDO ESTEVE NO ACRE - A SOLIDÃO E O DESEPERO VOLTAM AOS PERSONAGENS.
 CAPÍTULO 05
RIANA: Às vezes sim, às vezes não. É de veneta. Em alguns dias acredito em Deus. Todavia, também creio que o demônio foi criado por Deus.
JÚLIO: Claro, Deus é o criador de tudo.
RIANA: Pois é. Lúcifer, Hitler, Chico Picadinho e milhões de assassinos, ladrões, políticos e toda a maldade do mundo.

LEONARDO: Ah, isso não. Ele deu o livre arbítrio, você escolhe o lado que quer ficar.
RIANA: Será? Que escolha eu tive? Sou filha de puta. Desde criança tinha que dormir na sala para minha mãe atender a seus clientes no quarto. Não podia ter medo do escuro. Lembro que, quando chovia e vinham trovões e relâmpagos, por várias vezes, fiz xixi na roupa. Com cinco anos de idade já pedia a Deus que me levasse... Eu odiava aquela vida. Quando fiz oito anos minha mãe arranjou um parceiro fixo. Era um baiano mais jovem que ela e trabalhava como segurança de boate. No início dessa relação minha situação melhorou um pouco, mas alguns meses depois tudo mudou. O escroto do baiano passou a me acariciar escondido. Era só ter chance e lá vinha ele na maldade. Passava a mão na minha bunda deixando o dedo mindinho escorregar até onde ele queria. Eu chorava sempre, pois mesmo sem entender muito bem, aquilo não me parecia normal.
Ele passou a me ameaçar. Dizia que iria falar para minha mãe que eu o tentava e, em cima do meu medo, passou a me bolinar. Eu sentia nojo, um nojo enorme, do tamanho do meu medo. Bastava minha mãe sair para comprar cigarros ou qualquer coisa, que ele vinha me assediar. Esperto, ele nunca me penetrou. Sabia que se fizesse isso iria se fuder, pois eu era uma criança e virgem. Mas, fazia outras sacanagens. Eu morria de medo de minha mãe descobrir tudo e, calada, aceitava essa invasão. Achava que ela iria me culpar, me botar para fora de casa ou coisa parecida. Com o tempo comecei a ficar agressiva em casa, na escola, no prédio. Não queria mais sair, minha mãe achou que eu estava doente e passou a ficar mais tempo comigo. O filho da puta falava que ela não se preocupasse comigo, podia ir trabalhar que ele tomaria conta de mim, e tanto ele insistiu que a convenceu. Ela retornou para a pista me deixando sozinha com o tarado.
Contudo, minha mãe estava desconfiada do meu comportamento, ela era uma mulher vivida. Certa tarde saiu e deixou a porta da área de serviço trancada sem ser chaveada. Falou que iria atender alguém e saiu bem apressada como se estivesse atrasada. Graças a Deus retornou logo em seguida e, matreiramente, subiu de elevador até dois andares anteriores e continuou pelas escadas até o nosso apartamento. Entrou em silêncio pela porta de serviço que dava para a cozinha e ficou escondida. Quando ouviu meu choro e minhas queixas se armou com uma faca de cozinha e entrou no quarto. Ainda o viu em cima da cama tentando tirar, à força, o lençol que eu agarrava procurando me proteger. Entendendo o que se passava ela partiu para cima dele com a faca, ele tentou pular para o lado, mas não conseguiu se livrar totalmente do golpe. Com um grito de ódio a minha mãe cravou a faca na bunda do tarado, golpeou várias vezes e correu para me abraçar. O vagabundo, mesmo ferido, conseguiu correr até a porta fugindo.
O sangue escorria pela casa deixando uma lista de gotas vermelhas que ia desde o quarto, passando pela sala, atravessando o corredor e terminando na porta do elevador. Depois de me livrar do bandido, minha mãe correu até a porta e trancou-a, depois foi até a cozinha e fechou também a porta de serviço. Então, correu até a mim e me abraçou com força. Chorando feito uma desesperada me pedia perdão, me beijava enlouquecida, me sufocava de tanto carinho e culpas. Depois disso, nunca mais arranjou amante para morar conosco. Muito tempo depois ainda choramingava pelos cantos da casa me sufocando de beijos e pedidos de perdão.
LEONARDO:  Que barra!
JÚLIO: Eu também fui bolinado, quando criança, por um padre da capela do bairro.
LEONARDO:  Que nojento, mas acontece demais.
RIANA: Mas, isso não me traumatizou, só tenho raiva quando, às vezes, lembro.
JÚLIO: Eu também esqueci, mas na época até achei que iria ser viado porque, vou confessar, eu gostava das brincadeiras, só não sei aquilo se era curiosidade ou o que era.
RIANA: Eu acho que era pura sacanagem. Você gostava da sacanagem desde criançinha, era um tarado infantil.
JÚLIO: Mas eu não era tão criança quanto você, já tinha doze anos. Gostava quando ele acariciava meu sexo, pois além do prazer do contato ele ainda me dava dinheiro.
LEONARDO: E como terminou?
JÚLIO: Ele morreu engasgado com pão. É verdade, não riam! Ele estava jantando e um pedaço de pão caiu na glote, engasgando-o. Como estava sozinho em casa, não houve quem o socorresse. Foi encontrado no dia seguinte caído sobre a mesa. Estava todo roxo, horrível. Eu era meio carola e acreditei que foi um castigo de Deus.
RIANA: Coitadinho, tão jovem e já viúvo. (Brinca com Julio)
LEONARDO: E, ainda por cima, de um padre. Que pecado! (Riem todos)
JÚLIO: Quanta besteira! Nossa, como está ficando frio.
LEONARDO: É verdade. Poderíamos ficar todos juntos, quem sabe assim nos aqueceríamos?
RIANA: Eu não. Não vou me agarrar a vocês e, ainda por cima, de graça. (Riem novamente)
JÚLIO: Nossa! Puta na vida e puta na morte.
LEONARDO: Isso é que é profissionalismo.
RIANA: É mole, ou quer mais? Ta brincando, é? Nem sei que momento é este. Para mim ta tudo como antes. É dinheiro na mão e calcinha no chão.
LEONARDO: Nossa! Como ela é “baixa”... (Resmungando)
RIANA: O que você falou?
LEONARDO: Nada. Falei para mim mesmo.
JÚLIO: Você falou que superou as bolinações que sofreu quando criança. E então, o que a levou a ficar tão amarga?
RIANA: Eu não sou amarga. Sou realista, querido.
LEONARDO: Se isso é realismo, imagine o imaginário.
RIANA: Gente, eu sou uma puta que, além de ter nascido dessa vida, vivo dela. Nada para mim é novidade. O apartamento que vivo foi deixado para minha mãe por meus avós e, depois, ficou para mim de herança. Minha mãe é que não soube fazer nada direito. Meus avós morreram muito cedo em um desastre de carro na Avenida Ipiranga, em pleno domingo de páscoa. Eu nem existia ainda, mas já peguei o bonde da miséria andando. Por diversas vezes minha mãe quis se desfazer do apartamento... ainda bem que não deu certo. Eu também pensei, por várias vezes, em passá-lo adiante, pois faz mais de seis meses que não tenho dinheiro para pagar o condomínio. Quando eu era jovem e gostosinha não faltavam clientes, mas isso agora é objeto raro. As meninas estão dando de graça em beira de cerca, além da viadagem que é uma forte concorrência. Só sobra o que ninguém mais quer. A idade chegou e com ela foram embora as minhas esperanças.
Agora, tudo para mim é possibilidade... Possibilidade de morrer atropelada na esquina? Sim! De morrer dentro de um tiroteio? Milhares de possibilidades. Pegar doenças? Todas. Acabei de fazer um teste, e querem saber o que deu? Positivo. É, sou HIV, aidética, entenderam?  O que me resta? Dias melhores? Não sou louca, queridos! Sei o meu lugar. Procurei a morte? Sim. Estava cansada de tanto sofrer... Queria me livrar desse peso que é a vida. Vou para o inferno? E daí? Será que é pior do que aqui? Digam-me... Já passaram fome? Dias sem ter o que comer? (gritando) JÁ BEIJARAM UMA BOCA DE UM MENDIGO SUJO, CHEIO DE DENTES CARIADOS POR ALGUNS CENTAVOS SÓ PARA COMPRAR CIGARROS OU UM PÃO? Nunca, nunca precisaram disso. Então, o que estão fazendo aqui no meu inferno? Esse lugar é só meu? Porra, caralho, saiam do meu sonho... SAIAM!!! (Enfurecida)
JÚLIO: Calma, senhora! Calma! (Se aproxima) Tenha fé em Deus que tudo vai acabar bem.
LEONARDO: É verdade. É só ter fé. (Tenta abraçar Riana)
RIANA: Largue-me, não me toque, saia de perto de mim com a porra de sua fé. Saiam! Há muito tempo esse Senhor chamado Deus me deixou na mão. (Cai em prantos)
Silêncio total durante alguns minutos. De repente, volta o som das remadas nas águas, latidos e, agora, uivos humanos guturais e desesperados sobressaem sobre os latidos caninos.
Todos se entreolham apavorados.

LEONARDO: Acho que o tal Caronte está voltando.

JÚLIO: (calmo e explicativo) Tenho quase certeza que esse lugar onde estamos é o Hades, que significa inferno. Hades também é o nome do deus que reina com sua esposa Perséfones nesse mundo subterrâneo. É também, na mitologia grega, irmão de Zeus. Os uivos que ouvimos devem ser de Cérbero. Caronte deve nos ter trazido por todo o rio Aqueronte enquanto estávamos desacordados.
RIANA: Será? Então deve ter uma maneira de sair daqui. Ainda no ginásio, li A Divina Comédia de Dante e lembro que alguém fugia desse inferno ou Hades. (Esperançosa)
JÚLIO: Realmente, na história, entraram e saíram do inferno quatro personagens: Hércules, Psiquê, Eneas e Orfeu.
LEONARDO: Então, existe uma forma de atravessar o Aqueronte e fugir daqui! (Apontando para o rio borbulhante de lavas) Como eles conseguiram?
JÚLIO: Eles enfrentaram o Hades, ou o demônio, por amor a alguém.  Amor é a única forma de vencer o demônio. (Irônico) Claro que, da maneira como se portam, vocês desconhecem esse sentimento.
LEONARDO: E você, sabe o que é o amor? (Desdenhando).
JÚLIO: Também não.
Fez- se silêncio no ambiente. Os uivos de Cérbero, as remadas de Caronte e os gritos desesperados estão cada vez mais próximos. O ar está novamente asfixiante, uma neblina começa a envolver o ambiente. Querendo afugentar o medo os três companheiros fingem que não se importam com o que acontece na caverna.
JÚLIO: (Após alguns instantes) Vocês acreditam em Deus?
RIANA: Não.
LEONARDO:  Às vezes sim, depende da situação.
JÚLIO: Pois eu acredito.
RIANA: Bem, dizem que, depois da morte, todos irão encontrar com um dos dois. Mas, se estamos mortos, onde eles estão? Até aqui não deram o ar da graça, nem Deus nem o demônio.
LEONARDO: É verdade! Terrível, essa confirmação.
JÚLIO: Acho que, logo, Ele vai dar um sinal. (Esperançoso)
RIANA: E se Ele, realmente, não existir? Como você fica?
JÚLIO: Essa hipótese não existe para mim. Sou tão feliz acreditando na existência divina que, se Ele não existir, eu o crio. Não imagino a minha vida sem o Criador. E ainda acredito na eternidade, para mim toda criação é eterna. (Levanta-se irritado)
RIANA: Vã filosofia de menino rico.
JÚLIO: Não vou discutir minha fé com você.
LEONARDO: Tudo é uma questão de fé... uns fedem menos outros fedem mais.
Todos riem.
JÚLIO: Você é muito engraçado, Leonardo. Quem é você, de verdade?
RIANA: Além do acidente, porque se matou?
LEONARDO: (Alterado) Eu nunca me mataria... foi um acidente.
RIANA: Claro que não. Todos nós nos suicidamos.
JÚLIO: Vocês sim. Porém, foi uma forte dor de cabeça que me levou a exagerar na dose de comprimidos. Era uma dor insuportável.
RIANA: Vocês podem mentir para si mesmos, mas para mim alta velocidade e overdose são suicídio tanto quanto pular do alto de um edifício.
LEONARDO: Não acho. Eu já estava acostumado com alta velocidade... Era apenas mais um prazer.
JÚLIO: Eu não queria morrer, minha vida estava muito boa. Estava bem casado, tinha filhos, cachorros, etc. Não tenho dívidas de que não existia motivos para que eu me matasse.
RIANA: E porque tomou tantos analgésicos com álcool? Todo mundo sabe que é um coquetel mortal, várias pessoas já morreram assim.
JÚLIO: Eu sei de tudo isso, mas o que eu queria era me livrar da dor de cabeça. Estava insuportável.
LEONARDO: Aqui, a única suicida é você. Se estamos mortos não deveríamos estarmos juntos. O suicídio é um pecado mortal.
RIANA: (Gargalhando) E o que você sabe de pecado ou de Deus? Eu assumo que não acredito em nada, um de vocês há alguns minutos atrás falou que às vezes era totalmente descrente.  
A luz do farol do fim da caverna volta a clarear o ambiente. Começa a cair do céu uma chuva fina. Os morcegos começam a voar dentro da caverna. Riana começa a gritar e correr em círculos. Júlio e Leonardo correm e a abraçam protegendo-a dos animais. Após alguns minutos a chuva passa, os morcegos sobem em direção ao cume da caverna e somem. Riana, agora mais calma, sorri de agradecimento aos homens e senta-se no chão. Julio senta ao seu lado. Leonardo, de pé, continua falando.

LEONARDO: Realmente, eu falei e continuo falando bobagens. A vida inteira eu falei e fiz bobagens. Acho que é por isso que estou nesse lugar. Devo estar pagando por tudo, mas já passei por momentos em que senti a presença de Deus, ou de algo bem grandioso. Mas, na maioria das vezes, não consigo sentir nada pelo que não entendo ou por aquilo não vejo.
JÚLIO: Eu, ao contrário, sinto a presença de Deus em todo lugar. Dentro do avião quando piloto entre as nuvens e, principalmente, quando vou a igreja.
LEONARDO: Nunca senti o que falam aquilo que sentem os religiosos nas igrejas... e olha que me esforço bastante.
RIANA: Eu tenho motivos para não acreditar em nada. Nunca, nenhum santo, anjo ou demônio me estendeu a mão para me levantar na rua ou, sequer, me empurrar de escada abaixo. Sempre me levantei sozinha.
LEONARDO: Certa vez, muito tempo atrás, passei por uma situação muito estranha. Acho que foi o que, de mais próximo, vivenciei de uma experiência de fé. Querem ouvir?
RIANA: E o jeito? Estamos todos juntos nesse buraco.
JÚLIO: Nos conte! É bom para passar o tempo.
RIANA: Que tempo? Isso, aqui não conta.
JÚLIO: Você é muito chata, se não estivesse morta juro que a mataria. (Todos riem)
LEONARDO: Essa foi ótima. Encontrava-me de férias em Natal, no Rio Grande do Norte, juntamente com um grupo de amigos. Certa manhã, fomos seduzidos por um pescador para irmos, no seu barco, conhecer a famosa ilha de Fernando de Noronha. Acertamos o preço e combinamos de embarcar nessa aventura. Estávamos em um grupo muito animado. Eram três casais de amigos, estudantes da mesma turma na faculdade de Direito da Bennet, lá no bairro do Flamengo.

RIANA: Você estica muito a história, que coisa chata.
LEONARDO:  Só sei contar assim, dando vida ao assunto.
RIANA: Para mim isso é frescura.
JÚLIO: Deixe o rapaz contar a estória, larga de ser pentelha.
RIANA: Agora deu... Caronte não veio, mas mandou o secretário para me encher. Larga do meu pé!
LEONARDO: Bem, quem não quiser ouvir atravesse o Aqueronte. (Todos riem)
JÚLIO: Continue.

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