A Barca de Caronte

                                  A Barca de Caronte



                                                                                  De Junior Dalberto



Início

Das estalactites que cresciam no alto do cume da caverna, acompanhando o passar dos séculos, escorriam, lentamente, do teto da enorme e mal iluminada gruta, pingos vaporosos de água quente como se fossem preguiçosas e intermináveis cascatas. Alguns evaporavam antes de chegarem ao seu destino.


No chão, uma branca e fina mão de alguém de meia idade era de uma mulher magra, quase esquelética. Estava deitada no chão lodoso e em posição fetal. Vestia, além de uma velha camiseta surrada, branca, masculina, tendo como estampa a língua, símbolo dos Rolling Stones, já bem descolorida, uma calcinha branca, suja de terra e lama do insalubre, esfumaçado e calorento lugar. Parecia desmaiada e insensível para a mancha rosácea de queimadura que se formava na sua mão esquerda que se encontrava estendida com o indicador apontando para algum lugar.


Uma dezena de morcegos dependurados em outras estalactites que se encontravam secas, com olhos amarelados, mas bem abertos, acompanhavam, absortos, o pingar das gotas.

Ao longe, se ouvia, de forma repetida e monocórdia, o som de remadas suaves; remos que, firmes, cortavam algum trecho d’água. Parecia aproximar-se, mui lentamente, algum barco.


Não se conseguia entender se era noite ou dia. Luzes surgiam e desapareciam como se fossem relâmpagos; algumas vezes brancas e bem iluminadas como procedentes de um farol as quais, do fim de um estranho lugar, apontavam um caminho; outras vezes douradas ou azuis, como raios solares ou lunares, vindas do cume da caverna através de frestas. Porém, o que permanecia iluminando o ambiente era o reflexo vermelho e dourado das águas borbulhantes do rio de fogo que circulava aquele lugar, onde o odor que se sentia era a mistura do fedor de amônia, urina e fumaça de carvão queimado.

À direita da adormecida mulher, um senhor de seus cinquenta anos estava parado, sentado na terra úmida e vestido com um pijama de seda verde. Tinha um olhar catatônico diante daquela visão infernal que prendia seu olhar.

Vapores com lufadas abrasadoras invadiam, de vez em quando, o lugar. Vinham de todas as direções e, sem pedir licença, chegavam invadindo as narinas, ferindo os dutos nasais como se fossem agulhas ou pregos gigantescos enfiados cérebro adentro, em direção às pupilas. A sensação era como se tivesse sentindo dores insuportáveis e a visão parecia estar cheia de luzes prateadas piscando confusamente.

Julio, era esse o seu nome, continuava com seu olhar preso a estalactite de onde escorriam gotas sobre a mão de Riana. Condoído, pensava em levantar-se e fazer algo, acordá-la talvez, mas, sem forças, continuava como que preso ao chão, inerte, mal conseguindo respirar aquela mistura de ar, fumaça e amônia. Sua cabeça parecia que iria explodir a qualquer momento. Com uma dor terrível e a sensação provocada pelas luzes que não paravam de piscar, pensava estar perdendo a sanidade em meio a tanta dor e loucura.

Mais atrás, uns dois metros de onde ele se encontrava, via-se um jovem bonito, alto e moreno. Possuía um rosto quadrado, seus cabelos eram negros, crespos e úmidos; vestia-se, apenas, com uma camiseta regata e cueca branca. Achava-se com um olhar perdido e direcionado para além de dois rochedos de cor cinza. Eram dois magníficos e imponentes monólitos de aproximadamente cinco metros de altura e um metro de circunferência. Ambos eram totalmente idênticos e lembravam fálicos picos.

Eram duas lisas e gigantes estalagmites separadas por um rio sulfuroso de águas quentes e vermelhas que, borbulhando, elevava a temperatura do ambiente entorpecendo seus habitantes e lhes roubando a vontade de, até pensar, quanto mais de levantar-se. “Com certeza, é um efeito de uma droga muito pesada.” Pensava, desconsolado, o aturdido Leonardo, sem conseguir sequer fechar os olhos. Incômodas gotas de suor escorriam da sua cabeça pela nuca seguindo pelo grosso pescoço, pelas costas e peito em direção ao chão úmido da caverna. Obedecendo a ordem natural da gravidade provocavam, ao escorrerem pelo ânus, ardores entre as nádegas.


De repente, são interrompidos por um gemido sofrido, gutural, acompanhado de um esforço que é sentido por todos.

A mulher levanta, lentamente, o corpo do chão e leva, instintivamente, sua mão, avermelhada pelas queimaduras, aos lábios.

RIANA: Caralho! Puta que pariu! Estou queimando.

Uma voz, quase inaudível, surge em seguida, como resposta:

JÚLIO: Alguém sabe onde estamos?

Quebrando também o silêncio outra voz, mais jovem, reverbera entre as paredes.

LEONARDO: Não tenho nem idéia. Parece um sonho, um pesadelo, talvez.

RIANA: (Levantando-se com bastante esforço, pára de olhar a mão e começa a observar o lugar) No inferno, suponho. Que lugar horrível é esse? E essa fumaça? Deus do céu! Parece que vai me cozinhar por dentro. Nossa, que horror! (E tosse, engasgada).

O rapaz, que agora também se encontra de pé, caminha até as rochas gêmeas, toca-as com as mãos e, como que estivesse tocado em brasas, tira-as de imediato. Chuta um pedregulho que, sem fazer barulho, cai nas águas quentes do rio borbulhante. Em seguida fala:

LEONARDO: Acho que não é o inferno, pois não o imagino assim. Vejam! Tem um cadáver passando semi submerso. Estão vendo? (Aponta o dedo). Ali parece um esqueleto queimando, ainda tem fumaça nos cabelos. Olha lá uma porta! Caralho, que porra é isso!? Deve ser o inferno sim, mas falta algo!


Acordando do estado catatônico em que se encontrava, o senhor resolve participar da conversa. Desenvolve, entre todos, naquele ambiente estranho o seguinte dialogo:

JÚLIO: (Irritado) O que esperavas? O capeta, em pessoa, nos recebendo?

RIANA: Seria muita honra. (Balançando a cabeça tentando colocar as idéias no lugar) Acho que sou eu que estou sonhando.

LEONARDO: (Desesperado) E o que eu faço no seu sonho?

JÚLIO: Não é sonho, acreditem. Acho que estamos todos mortos. Perdemos nosso julgamento e já estamos no inferno. Eu sempre imaginei o inferno assim, com esse cheiro de amônia.

RIANA: Você, querido! Então, se esse for o seu inferno, o sonho é todo seu. Vamos, liberte-me desse seu pesadelo. (Pega no braço de Julio que se afasta com um safanão).

LEONARDO: Isso, ela ta certa. Vamos, acorde. (Pegando, também, no braço de Julio e aos gritos) Quero voltar para minha cama.

JULIO: Se eu soubesse como, faria imediatamente. (Senta no chão procurando algo nos bolsos).

LEONARDO: (Alheio, caminha entre os dois.) Acho que, realmente, estou morto. Lembro do acidente, claro que lembro. Foi foda... Uma pancada do caralho, mas o estranho e que não sinto nada, dor nenhuma... Mas, porque estou de cueca e camiseta? Devo estar dormindo ainda... Belisca-me! Vai cara! Caralho, esse doeu! Logo mais vou acordar e tudo vai estar igual como quando sai de casa pela manhã. Não estou morto coisa nenhuma, pois sinto o meu corpo inteiro, dedos, pés (Se toca). Estranho, que loucura é essa? Quando fico nervoso me dá vontade de fazer xixi, merda!

RIANA: (Sentada, novamente, próxima do lugar onde caíam as gotas das estalactites, porém, afastando-se delas) Vá ali, atrás daquela pedra e alivie-se. É realmente tudo muito esquisito. Esse lugar, vocês. A minha última lembrança foi quando cai do parapeito do prédio, mas também não sinto nada, dor nenhuma, nenhum osso quebrado... consigo até andar. E cadê a porra da maldita pomba que tentei salvar? Deve ter voado... filha da puta mal agradecida. Me fodi todinha por ela e ela nem aí. E como tudo nessa merda de vida, gratidão never. Mas... como conseguiu voar se estava toda molhada? Que merda é essa que estou falando? Quem se importa! (Levanta-se e dar umas passadas) Mas, que lugar é esse, meu Deus? E quem são vocês?


JÚLIO: (Estendendo a mão e apresentando-se) Julio Silveira, piloto comercial. Bom, pelo menos era.

LEONARDO: Eu sou Leonardo Esteban, meio espanhol, arquiteto, web designer, astrólogo, DJ, promoter, ex-reality show, bissexual e cantor nas horas vagas. E você?

RIANA: Riana Santos, atendimento corporal a domicilio, puta.

JÚLIO: Caralho! Com essas criaturas, se não é o inferno, estou no meio do caminho.

RIANA: Do caminho do nada, já falei. Estamos todos em um sonho, o meu sonho.


LEONARDO: É muita pretensão sua. Porque não seria o meu sonho? Ou o dele?

RIANA: Porque eu sinto isso, e mulher tem essa coisa de intuição.

JÚLIO: Sonho? Que nada. Estamos mesmo é numa merda grande.

LEONARDO: Vocês são pessimistas. Tem um rio aqui. Água é limpeza, purificação. Acho que isso é meio Caverna do Dragão, lembram? Claro que não lembram. Impossível, são bem mais velhos que eu. Acho que logo, mas bem logo, aparecerá algo ou alguém para explicar. (Ele fica de pé. Sempre olhando para o fundo do lugar, caminha até o rio sulfuroso).


CONTINUA...

REVISÃO: Gilberto Costa

QUEM SÃO ESSAS CRIATURAS? ONDE ESTÃO? VIVOS OU MORTOS, SONHANDO OU ACORDADOS? ENCONTRE RESPOSTAS NOS PRÓXIMOS CAPÍTULOS DA “BARCA DE CARONTE



Capitulo 02
No capítulo anterior três desconhecidos se encontram em um lugar o qual não conseguem entender onde fica nem o que é. Não sabem se estão vivos, mortos ou dormindo. Sem nenhum controle sobre a situação nenhum deles consegue identificar se ela é real ou imaginária”.
JÚLIO: Talvez tenhas razão. Quem sabe o mestre dos magos ou aquele unicórnio afeminado? Olha aqui garoto, velho é o tempo que é dono da idade. Esse desenho é mais velho do que você. Vamos cair na real. Isso aqui é o portal do inferno e, realmente, só falta aparecer o dragão do mal.
RIANA: Concordo com quase tudo, mas acho que logo acordo desse pesadelo. (Falando para si) Qual a última lembrança de vocês?
Leonardo resolve caminhar de volta até onde estão os dois e, fazendo pose como se estivesse em um palco, vai andando e tentando livrar-se de algumas gotas quentes que caem do alto. Tosse e fala:
LEONARDO: Eu estava testando o meu novo carro, se é que se pode conceituar um poscher de carro! Eu corria logo ali, na Avenida Raposo Tavares, em direção à casa dos meus pais que fica em Cotia. Domingão, almoço em família é de lei, avenida larga, poucos carros... Sabe como é! Um maravilhoso, desejado e disputadíssimo Poscher verde-musgo metalizado, ainda sem placas, painel todo de madeira, um luxo completo - Rick Martin tem um igualzinho - aquele cheirinho de novo que é melhor do que sexo, banco de couro, perfeito até a fumaça.

Depois que sentei no banco e girei a chave entrei em outro mundo... Pisei fundo e quanto mais eu acelerava mais dava vontade de correr. A avenida estava perfeita e inteirinha só para mim. Um sol suave iluminava o percurso, o vento acariciava meu rosto, as árvores curvavam-se quando eu passava. Silêncio absoluto. O motor parecia não existir, não se ouvia nenhum barulho. Ah, a primeira coisa que farei quando acordar desse pesadelo será arrombar aqueles canos de escape. De que adianta ser dono de um poscher e não ser notado? É como ir para Las Vegas de classe econômica (Não espera respostas). Bom, continuando: pisei fundo, não havia nenhum outro carro na avenida, sorte grande, como minhas cartas de Tarô sempre dizem.
Que viagem, meu! Eu me sentia dono do mundo, muita leveza, parecia que pilotava uma super lancha em alto mar, a sensação é idêntica. Acho que é o mesmo prazer de pilotar um jatinho, não é cara? (Júlio sequer olha para ele) Tentei encostar os ponteiros, mas claro, sempre com muita responsabilidade. Ficava ligado na pista, um olho nos ponteiros e o outro na avenida. De repente, passei de Cotia... My good! Demais! Quando olhei pelo retrovisor vi que o posto de gasolina já estava longe. Eu me senti na fórmula Indy. Não, não estou brincando. Demais, demais! Era uma sensação muito boa, a adrenalina estava a mil. Eu era o próprio poscher, meu pé estava colado no acelerador, não tinha vontade nenhuma de diminuir a velocidade. Naquele momento, sentia-me parte dele, uma engrenagem qualquer, talvez sua alma...
O motor roncava baixinho, ronronava. Rapidinho o ponteiro chegou aos 200 quilômetros e daí até 260 foi uma questão de segundos. Só me lembro de olhar o ponteiro colando, depois, mais nada, só um forte esbarrão no peito e um gosto quente na boca. Rápido, muito rápido, tudo escureceu. Depois, muito frio, um frio de arrebentar tomou conta de tudo. Um breu gelado... Parecia que estava dentro de uma gelatina negra e sufocante. Não conseguia mover-me, nada, nem um músculo, nem os olhos. Saca ficção cientifica? Aquele filme em que o cara fica girando dentro de uma cápsula e todo mundo olhando do lado de fora para ele e ele totalmente paralisado? Era como se eu estivesse ali girando naquela coisa e, de repente... Apareço aqui.
Estou em dúvida se morri ou se estou dormindo preso entre as ferragens. Já sei, será que estou em coma em algum hospital do governo? Puta que pariu! Que merda! Se estou mesmo em algum hospital do governo, merda grande ou coisa parecida, irei me estrepar de qualquer jeito.
E, de repente, foi deitando no chão como se, depois do esforço de tanto falar, estivesse muito cansado.
LEONARDO: Estou me sentindo muito cansado.
No alto da caverna surge uma fina luz dourada como se raios de Sol penetrassem por uma pequena abertura e distribuísse sua luz até onde se encontra o trio. A iluminação inesperada provoca uma melhor visibilidade no local. Julio vai até onde os raios tocam o chão, coloca o rosto nos reflexos dos raios e de olhos fechados, ironicamente, se dirige a Leonardo.
JÚLIO: Morte chique, não? Num poscher... Quer mais o que? O bom é que você ainda lembra. Acho que, realmente, esse sonho é seu. Ainda está preso nas ferragens e quer nos prender nessa viagem. Egoísta, como todo poderoso. Brincadeira...! Eu não sei o que aconteceu comigo, fui deitar com muita dor na nuca, tomei alguns analgésicos e acho que bebi uns drinques a mais, mas isso já é de costume. Agora estou aqui, estava pensando que era um sonho, mas está tudo tão real, talvez seja eu quem, ainda dormindo, tenha morrido.
RIANA: E quando acordar? Morta, já que viva, aparentemente, não estou. Ainda está aqui dentro (aponta para a cabeça) a imagem bem fresquinha do meu salto para o infinito. Pulei... Foi um salto único, sem culpas, do vigésimo oitavo andar. Depressão no grau seis após um coquetel de rivotril, lexotam, vodca, café, maconha, haxixe e mais um porrilhão de coisas somado a essa vida de merda. Perfeito, eu já estava mesmo no meio do caminho para o inferno! Agora tanto faz. Vocês se fuderam ao invadirem o meu pesadelo. (Gargalha sozinha e em voz alta convulsionando o próprio corpo num ataque de histeria, assustando os companheiros de infortúnio)
Um silêncio se abate sobre o ambiente e apenas o som das remadas nas águas do rio sulfuroso invadiam o lugar, porém esse barco ou sabe-se lá o que, nunca chegava.
LEONARDO: Já sei! Esse rio é de lavas e não tem nada de Caronte nem Aqueronte... Isso é um vulcão.

RIANA: Então a qualquer momento “bumm” iremos pelos ares juntamente com uma terrível erupção.
JÚLIO: É possível, mas isso não explica como chegamos aqui e por que estamos vivendo essa situação!
LEONARDO: Sequestro. É isso, claro! Vocês estão de conluio nessa farsa. Não passam de sequestradores que me pegaram dentro do carro depois do acidente e estão tentando extorquir minha família.
RIANA: Ta viajando, o moleque!
LEONARDO: Porque não? Só pode ser. Vocês estão armando tudo isso para me enlouquecer. Confessem! E quase conseguiram. Eu sei que é porque tenho grana, isso é normal! Como demorou a cair a ficha! Digam quanto querem e vamos acabar logo com isso.
JÚLIO: Enlouqueceu de vez. Ei cara pálida, acorda! Qual idiota colocaria sua vítima dentro de um vulcão, ou que merda seja esse lugar, e ficaria do lado, sofrendo nesse calor insano? Imbecil e idiota!
RIANA: Todo homossexual é egocêntrico. Eu tenho raiva da maioria deles. (Afasta-se de Leonardo) Meu mundo por um cigarro.
LEONARDO: Preconceito...? Você não é nenhum exemplo de castidade.
RIANA: (Falando para si) Se acham injustiçados por tudo, dizem que são minorias. Como? Se, hoje em dia, em cada casa tem um gay ou uma sapatão. Isso é normal e para mim está tudo bem, diversidade geral. (Risos) O que me incomoda é que se sentem donos dos lugares.
JÚLIO: Como assim? Não entendi.
LEONARDO: (Irritado) Somos segregados aos guetos como vocês aos puteiros!
RIANA: Mentira grande. Vocês chegam de mansinho e tomam conta do lugar e do que estiver ao redor. O povo se afasta porque quando vocês chegam a putaria impera.
LEONARDO: isso e puro despeito, inveja e preconceito.
RIANA: Quer ver? Preconceito? Vou lhe provar. Desde criança que moro na Avenida da Consolação quase esquina com a Paulista. Sempre aos domingos costumo caminhar com minha mãe até o museu do MASP para ver aquela feirinha e almoçar, religiosamente, um delicioso yakissoba feito por um japa estrábico que tem uma barraca em frente ao parque Trianon; depois de almoçarmos sentamos nos bancos de madeira e ficamos observando os pássaros e a natureza... Assim passávamos nossos domingos antes da galera gay resolver transformar aquele santuário em centro de pegação.

Praticamente fomos expulsas quando, em certo domingo, flagramos um casal de rapazes se pegando dentro do banheiro feminino. Fomos reclamar ao vigia - uma bicha velha que vivia dormindo no banco ao lado do banheiro – e ele surtou na nossa frente. Aos brados ficava perguntando com desdém quem éramos e o que estávamos fazendo naquele parque que pertencia a sua comunidade gay. Dizia ele que estávamos invadindo o espaço com o nosso preconceito; e não era nada disso, nós só queríamos usar o banheiro feminino. Júlio, você acredita que todo o povo da feirinha apoiou a bichona histérica? Foi um horror, fomos vaiadas; voltamos para casa correndo, de cabeças baixas e mortas de vergonha; perdi até a vontade de fazer xixi.
Um uivo ecoou no ar. Riana encolheu-se e agarrou-se ao braço de Júlio. Leonardo correu para perto dos dois e conteve-se, mantendo certa distância. A luz do farol chegou até eles e demorou alguns segundos como se alguém tivesse focalizando-os.
RIANA: Acho que chegou nossa hora. (Cruzou os braços, resignada)
JÚLIO: Que venha logo o nosso inferno. Estou cheio disso.
LEONARDO: Porque não o paraíso? (Com ironia)
Silencio novamente. A luz do farol desaparece e reaparece a luz dourada do alto da caverna.
RIANA: Você precisa acreditar no Céu para que ele possa existir.
JÚLIO: Você não tem religião, Riana?
RIANA: Tinha três, mas dispensei uma por uma a cada vez que abortava. Agora sou mais feliz, sem culpas.
LEONARDO: Feliz? Como feliz? Você nem sabe onde está! Não sabe se está viva ou morta e se diz feliz? (Rir nervoso)
JÚLIO: Ainda acho que estou sonhando! (Melancólico)
Assim como surgiram, as luzes solares começam a desaparecer. A caverna volta a ficar iluminada apenas pelo vermelho borbulhante do rio de fogo e lava. O silencio volta a imperar no ambiente. Depois de um longo tempo que pareceram horas, alguém resolve falar.
RIANA: Decididamente, alguém está no sonho de alguém ou então fazemos parte de um sonho de uma quarta pessoa.
JÚLIO: Agora você viajou mesmo.
LEONARDO: Então não existimos? Somos produtos de um sonho de outrem? Você está louca.
RIANA: Pesadelo. É isso, um horrível pesadelo. Estou começando a me irritar com isso. (Nervosa, vai até a margem. Apanha umas pedras e, tentando atingir a outra margem, joga-as, violentamente, sobre o rio e em seguida grita) Caronte, velho filho da puta, ou quem quer que você seja, venha logo. Acabe com essa angústia, vamos, mostre a sua cara, demônio dos infernos.
JÚLIO: (Alheio ao histerismo de Riana, fala-lhe calmamente) Talvez seja você quem está em coma em algum hospital. Afinal, você falou que havia pulado do edifício. É isso! (Exultante) Nós somos seu pesadelo.
LEONARDO: Quanta bobagem! Eu sinto que existe algo além daquela margem. (Apontando para além das duas torres de pedras)
RIANA: Vai lá descobrir! Eu não me sinto bem, sinto um vazio gigantesco, uma angústia sufocante, chega a doer na alma, uma vontade enorme de chorar. (Desiste de jogar pedras e senta-se no chão)
LEONARDO: Calma, você acha que adianta chorar? Não vai mudar em nada nossa situação.
JÚLIO: É tudo muito esquisito. Esse rio vermelho é quente demais, não da para passar... É muito quente e sulfuroso. Acho que é acido puro.
RIANA: Deve ser o rio que nos levará direto ao inferno. Só nós falta aparecer o tal barqueiro da morte.
JÚLIO: Caronte... É esse o seu nome. O rio é o Aqueronte. E talvez, esse ruído de remadas pode ser ele com seu barco.
RIANA: Então, estamos no Inferno de Dante.
LEONARDO: Nossa! Uma puta culta.
JÚLIO: Ou uma culta puta?
RIANA: A ordem da frase não altera o mau juízo.
JÚLIO: Desculpe-me.
RIANA: Já estou acostumada a ser tratada assim. Afinal, ser puta foi, talvez, uma escolha minha.
Novamente a luz branca vinda de um farol no fundo da caverna, ilumina rapidamente o ambiente, depois circula todo o lugar e some. O barulho das remadas fica mais forte. Ouve-se, longinquamente, um uivo de um cão reverberando pelas paredes da caverna.

RIANA: Meu Deus! É Cérbero! (Arrepia-se)

A BARCA DE CARONTE -3º CAPÍTULO.



NO CAPÍTULO ANTERIOR OS PERSONAGENS VIVERAM UMA GRANDE INQUIETUDE. AGORA, ELES SE DESESPERAM AO OUVIREM SONS INFERNAIS DE LATIDOS E UIVOS DE CÃES.


3º CAPÍTULO

JÚLIO: Estamos realmente a caminho do inferno. (Desespera-se) Eu não mereço isso! Isso não. Nunca, meu Deus! (Chora) Sempre fui legal com todos. (De pé e falando para si começa a girar em círculo)

LEONARDO: Então, Dante era um visionário?


RIANA: Tomara que não, pois morro de medo de cães. Imagine... Ter que encarar um com três cabeças? (Chora desesperada)

LEONARDO: Estamos mesmo mortos, mas não sinto nada, nenhuma sensação, nem dor, nem tristeza... Nada.

JÚLIO: Eu sinto uma saudade enorme do meu cachorro. Um pastor alemão - Cuzsco é o nome dele. (Chora sentado com o rosto entre os joelhos. Ninguém parece se importar)

RIANA: Odeio animais. Só nos dão despesas e trabalho. Ter que limpar xixi e apanhar merda. Cães babam, deixam pelos nos tapetes, no sofá, por toda a casa. Acho uma loucura cuidar de bicho. Quando pulei do prédio havia uma pomba no parapeito. Chovia muito e ela estava toda molhada. O olhar dela era de tristeza, desespero ou fome, sei lá. Angústia, talvez. Um horror. Quase a peguei para pular agarrada comigo. Queria livrá-la daquele olhar de tristeza. Se eu tivesse feito o que pensei acho que agora ela estaria ali, feliz, nos observando daquela pedra e, talvez, bem melhor do que quando estava viva.

JÚLIO: Você é muito amarga.

RIANA: A vida para mim nunca foi doce, querido! Nunca andei de poscher. A única vez que andei de táxi, em Sampa, foi quando levei um peito de minha mãe, após uma cirurgia de mastectomia, para o médico fazer uma biópsia e, acreditem, a sensação de levar um pedaço de alguém em uma caixa de isopor, sacolejando dentro de um táxi, não e nada confortável, ainda mais sendo de sua mãe. Faz um barulho estranho, dói na alma.


Enquanto Riana falava, uma lufada de ar quente invade, novamente, o ambiente. A luz que surgia do fundo da caverna como se viesse de um farol, anunciando um rochedo em alto mar, voltou de repente e muito forte. Todos cobrem os olhos com as mãos. Os latidos dos cães se aproximam. As remadas param. Os três se aproximam e, juntos, deixam-se cair lentamente, unidos e escorados um ao outro pelas costas, formando, com seus corpos, um triângulo. Não sabiam por que, mas sentiam-se mais confortáveis dessa maneira. Era como se autoprotegessem. Mais uma vez Leonardo rompe o silêncio.

LEONARDO: E depois?

RIANA: Ela ainda durou 23 dias. Antes mesmo de sair o resultado da biópsia o câncer evoluiu assustadoramente e ela me deixou sem sequer despedir-se. Acho que se deixou levar. Isso pra mim foi uma puta sacanagem... Deixou-me sozinha nesse inferno que é São Paulo. Eu ainda era menor de idade, quinze anos apenas. Foi uma barra segurar a onda. Abandonei-a no hospital assim que soube de sua morte e sai dali correndo. Não sei o que fizeram com o corpo. Passei dois dias fora de casa dormindo pela Avenida São João, embaixo da marquise de uma igreja evangélica junto com uma galera de rua. Não comi nem bebi nada durante esses dois dias. Apenas me droguei bastante. Não chorei uma lágrima sequer. Estava revoltada com tudo, com ela, com Deus, com o “caralho” do mundo. Eu estava só, seca, como um saco de plástico que havia sido largado aos quatro ventos, girando sem rumo, vazio, tão vazio e perdido quanto estou me sentindo agora.


Quando Riana acaba de falar, o ambiente escurece totalmente durante alguns segundos. Assustadoramente, o som das remadas passa bem próximo. O latido do cão parece anunciar a sua chegada. Mas, logo depois, as remadas vão distanciando-se e a tênue luz vermelha, vinda das águas borbulhantes do rio, volta a iluminar o ambiente.

RIANA: (Levantando-se) Faria qualquer coisa por um cigarro.

LEONARDO: Acho que Caronte está indo embora... As remadas estão se afastando. (Caminha até as pedras e tenta enxergar algo na continuação do rio. Desolado, volta a sentar-se no chão da caverna)

RIANA: Voltamos ao ponto de início.

JÚLIO: Acham que isso é estar morta?

LEONARDO: Claro que não! Se ela estivesse morta sua mãe estaria aqui para recebê-la.

RIANA: É ruim, hem! Ela deve ta fugindo de mim. Se bem que eu gostaria de encontrá-la, cara a cara.

LEONARDO: Eu estou muito cansado, não consigo respirar direito. Parece que o tempo passa muito rápido por aqui. É tudo muito opressivo, o ar está pesado... Ou estou enganado?

JÚLIO: Não. Você está certo! Estou sentindo um cansaço nas pernas. Acho que vou deitar-me ali, perto da pedra. Aqui está muito frio.

RIANA: Eu também estou muito cansada... Acho que vou descansar.

LEONARDO: Engraçado! Olhando daqui, na direção daquelas frestas, estou vendo estrelas. Se isso aqui é a porta do inferno como posso estar vendo o céu?

RIANA: É o firmamento.

LEONARDO: Então, se estamos vendo o firmamento é porque estamos em algum lugar na terra.

JÚLIO: Ou sonhando com ele.

RIANA: Ele? Quem?

JÚLIO: O firmamento.

LEONARDO: Quanta bobagem. Até parece que estamos drogados, viajando.

JÚLIO: Lembrou-me bastante uma situação que vivi em Rio Branco, no Acre.

LEONARDO: Já sei. Tomou o Daime?

JÚLIO: Tomei.

LEONARDO: E ai? Como foi o barato?

RIANA: Quando estava viva experimentei de tudo, menos o Daime.

JÚLIO: Gente foi pra lá de bom, uma lição de vida.

RIANA: Chega dessas pieguices e fala logo qual é o barato.

JÚLIO: Bem, eu estava numa folga de uma viagem em que pilotei de Brasília a Rio Branco. No voo havia uma comissária chamada Malu... Ela era uma gata.

RIANA: Já sei! Você a comia e etc. etc.

LEONARDO: Conte logo, estou ansioso.

JÚLIO: Acho que, aqui onde estamos, temos bastante tempo.

RIANA: Todo o tempo do mundo.

Pelas frestas, do alto da caverna, começam a aparecer pequenos raios dourados de sol. A caverna começa a ficar um pouco mais iluminada, porem seus ocupantes sequer notam essa mudança.

JÚLIO: Pois é. Eu e a Malu resolvemos experimentar o daime. Andamos pela pequena e verde cidade procurando informações junto ao Povo da Floresta, como se autodenominam os acreanos. Mas ninguém queria falar nada, parecia um grande segredo. Estávamos em um bairro chamado Gameleira. Para vocês que não conhecem, eu o descrevo. Gameleira é lugar bem simpático, localizado à margem do rio Acre, com centenas de casa de madeira, algumas do início da colonização. Tem até um teatro todo de madeira, tudo bem conservado. Às margens do rio existem frondosas arvores que sombreiam bancos de madeira para as pessoas descansarem. É um lugar bem bucólico no norte do país. Bom, estávamos nesse lugar quando conhecemos um motorista de táxi de uma cidade chamada Fortaleza do Abunã, em Rondônia, onde, segundo ele, existe a cachoeira mais bonita com o rio mais veloz do Brasil. Fica na fronteira com a Bolívia. Depois de muita conversa e um precinho camarada ele nos levou a um dos templos do daime. Existem vários, mas todos afastados do centro da cidade.


LEONARDO: Então, não é uma coisa comum? Assim como são as igrejas?

JÚLIO: É, e não é.

RIANA: Não entendi!

JÚLIO: Bem, segundo o motorista, nem todos os caminhos levam ao daime, porém, se você for escolhido, o daime lhe mostra o caminho.

LEONARDO: Interessante!

RIANA: Bobagem! Mas, e então? Quero saber do babado. O que você sentiu?

JÚLIO: Deixe-me contar do meu jeito, senão vou confundir tudo, ok?

LEONARDO: Tudo bem, vá lá.







Continua...



A Barca de Caronte – 4º Capítulo





NO CAPÍTULO ANTERIOR RIANA DESAGUA UM MAR DE LAMENTAÇÕES E JÚLIO, AGORA, RESOLVE CONTAR SUAS EXPERIÊNCIAS COM O SANTO DAIME!

4° CAPÍTULO

JÚLIO: Depois de sairmos do centro de Rio Branco, andamos, mais ou menos, uma hora mata adentro. A Malu já estava preocupada com assaltos ou coisa que o valha... neuroses de gente de cidade grande.

RIANA: Eu estaria morta de medo. Mata fechada, escuridão, selva... Morro de medo de cobras.

LEONARDO: É uma parada meio sinistra, mas continue.

JÚLIO: Bem, depois de muito tempo só vendo mata e alguns solitários postes de luzes, surge uma clareira... Gente, esqueci de dizer que era noite e havia uma enorme lua cheia no céu.

LEONARDO: Que mágico!

RIANA: Adianta, homem!

JÚLIO: Apareceu na nossa frente um grande muro branco de uns dois metros de altura com mais de duzentos de extensão. Parecia muro de cemitério. Demos a volta - porque o muro circulava o lugar - e encontramos um largo portão de madeira que estava aberto e bem iluminado; havia vários postes com luzes acesas e várias pessoas vestidas de branco entrando pelo portão; as mulheres vestiam-se com blusas e saias brancas ou vestidos compridos - também brancos - e com uma faixa verde na cintura; outras a usavam no pescoço, talvez imitando uma echarpe; algumas ostentavam na cabeça umas coroas de arames e pedras falsas, tipo aquelas que se usam em épocas de carnaval.

RIANA: Risível, totalmente sem lógica.

JÚLIO: Fomos recebidos na entrada por um amigo do motorista que, segundo o próprio, era parente do mestre Irineu - caboclo que um dia, através de uma visão, aprendeu a preparar a beberagem da consciência. Dizem que, teria sido ele o escolhido para receber a receita na qual estavam os tipos de cipós que encontraria no meio da floresta e a forma correta de como misturar e preparar o chá... coisas do povo da floresta.


LEONARDO: E como é o lugar?

JÚLIO: Bem organizado. O muro branco que cerca o lugar serve para evitar que animais e visitantes indesejáveis o invadam. Existem várias casinhas pequenas e pintadas de branco que são habitadas pelos guardadores do templo. Sim, existe um templo - um grande barracão de madeira com duas fileiras de bancos de madeira separadas; à direita sentam-se as mulheres, eu acho, e a esquerda os homens, ou ao contrário, não lembro. Existe também certa hierarquia, por exemplo, os mais velhos ocupam os primeiros bancos.

Lá na frente tem um altar com a maior misturada de imagens religiosas que já vi na vida: Jesus, Buda, São Jorge, São Sebastião, Iemanjá, entidades da umbanda, caboclos, iaras, entidades do candomblé, fotos de gente famosa, tipo Gandhi, etc. Havia até uma foto de Airton Senna, e a impressão que tive é que todas aquelas imagens conviviam em grande harmonia. Todas as pessoas que ali estavam as reverenciavam com estranhas cantorias. Como se fossem mantras eles ficavam repetindo tais cantorias até entrarem em transe.

Antes, em uma grande bandeja, foi servido para os fieis o famoso chá do daime. Eram vários copos pequenos feitos de plástico, pareciam aqueles que servem café em escritórios. Neles, havia uma mistura parecida com um suco escuro, meio grosso, e um sabor muito forte de raiz, porém, não me recordo do cheiro. Após beber o chá não senti absolutamente nada. Malu tomou o dela e foi para o meio do povo acompanhar as danças e cantorias. Eu fiquei na dúvida se iria participar ou não.

Alguns minutos depois senti, no estomago, uma fisgada fortíssima que me levou a dobrar o corpo de tanta dor. Depois, uma terrível cólica seguida de uma estranha sensação como se algo vivo percorresse-me por dentro. Era algo esquisitíssimo que fazia um forte barulho dentro da barriga e me deixava meio constrangido, pois eu achava que todo mundo estava ouvindo, mas todos estavam ligados nas cantorias. Do meu lado esquerdo o motorista que havia nos levado até aquele lugar, apontou, em silencio, um corredor que dava para o final do templo. Caminhei sem nem mesmo saber o motivo. O final do corredor ficava por trás do eclético altar e chegando lá pude perceber que era o local onde ficavam os banheiros – haviam uns quatro. Automaticamente fui me dirigindo para um deles. A cólica aumentava a medida que eu me aproximava, só deu tempo de levantar a tampa do vaso e sentar. Parecia que eu estava me esvaziando por inteiro. Achei que o chá havia me causado uma infecção intestinal.

Após um bom tempo, que me pareceram horas, consegui terminar o serviço. Estava me sentindo vazio como se todos os meus órgãos tivessem saído de dentro de mim, rim, fígado, coração, etc. Sentia minha respiração de uma forma diferente, cadenciada, parecia que ela era algo consistente, como se tivesse forma. Eu sentia, literalmente, o ar passar pelo nariz e chegar aos pulmões. Era algo prazeroso e comecei a gostar daquele jeito de respirar. Fechei os olhos e vi, diante de mim, uma enorme serpente prateada e com riscas verdes; na cabeça, encontrava-se um enorme escorpião negro apontando o ferrão em minha direção, porém, parecia que ambos sorriam. Eu sorri também para eles e, de repente, fui interrompido por alguém batendo na porta do banheiro: era o motorista querendo saber se eu estava legal. Respondi que sim. Abri os olhos e, naquele instante, a cobra e seu escorpião negro sumiu.

Vesti as calças e levantei-me. Quando sai o rapaz falou que estava preocupado, pois já haviam passados uns quarenta minutos em que eu estava no banheiro. Comentei da cólica e ele falou que era normal. Para alguns aquilo se chamava purificação, para outros, uma surra do Daime. Rimos e caminhamos de volta ao salão onde vi a minha colega dançando muito animada com as crianças.

Quando olhei para as luzes do templo, enxerguei, no ar, fantásticos feixes de luzes que giravam e se fragmentavam. Era o chá fazendo efeito. Senti que precisava sair do salão. Andei até o centro do lugar onde havia um coreto, daqueles que existem em cidades de interior. Era todo branco e o interessante é que o telhado era meio cônico; no final, lembrando aquela imagem conhecida da Arca de Noé - o personagem bíblico - havia um barco de madeira de aproximadamente um metro. Eu só não conseguia entender a razão daquela arca em plena selva amazônica.

Por curiosidade, continuei andando pelo lugar até que encontrei uma pedra negra de aproximadamente dois metros de altura. Ela ficava próxima a saída do templo. Estava me sentindo muito cansado e então resolvi sentar no chão e me escorar nessa pedra. Foi aí que o bicho pegou!

DIANA: Como assim? Continue, estou curiosíssima.

LEONARDO: Eu estou babando pelo final disso tudo.

JÚLIO: Bem, ao me escorar na pedra achei-a muito quente, mas pensei: ela deve ter ficado exposta ao sol o dia inteiro, portanto é normal que esteja quente. Porém, o calor da pedra foi penetrando pelas minhas costas, parecia que eu iria pegar fogo, tentei levantar-me, mas minhas pernas não obedeciam, uma estranha corrente elétrica começou a invadir meu corpo. Essa energia estava saindo da pedra, e então comecei a me apavorar; achei que a pedra estava me sugando, ouvi o meu coração disparando e... comecei a ouvir algo que parecia vir de dentro da pedra: era um som semelhante a um pulsar de um coração - Tum Tum Tum. Gente, eu achei que estava enlouquecendo. A pedra tinha adquirido vida e estava se comunicando comigo... Eu estava apavorado, tentando a todo o momento ficar de pé, mas nada de minhas pernas obedecerem. Elas estavam unidas, como se fossem coladas em um corpo de uma serpente.

Senti que a pedra estava sugando minha energia e me transformando em uma cobra. Tentei gritar por socorro, mas não consegui articular nenhum som. Então, tive a ideia de jogar meu pensamento até a Malu para que ela viesse me socorrer. Foi aí que algo totalmente irracional aconteceu: consegui sair do meu corpo. Foi muito louco, gente! Eu me vi saindo do meu corpo. Fiquei de frente pra mim mesmo e, diante da pedra, eu era pura energia, meio fantasma, algo assim meio amarelo clarinho, transparente, sabem? Porém, eu conseguia caminhar normal. Sai rapidamente até a Malu e fui passando pelas pessoas... Eu atravessava seus corpos, sentia suas vísceras, seus corações batendo, suas veias pulsando e sentindo um cheiro delicioso no ar, contudo eu não conseguia identificar aquela fragrância. Tudo era muito prazeroso. Até que, finalmente, encontrei a Malu. Ela olhou-me nos olhos... tentei falar algo, mas não consegui, fui puxado de uma forma violenta de volta ao meu corpo.


Segundos depois a Malu chegou até onde eu estava, pegou na minha mão, chamou-me e eu saí do transe. Ela disse que me viu quando cheguei perto dela em forma de energia. Foi muito louco! Depois, gradativamente, eu e a Malu fomos voltando ao normal. O motorista, enquanto nos levava de volta para o hotel em Rio Branco, comentou que essas viagens fora do corpo eram comuns e que eu deveria tirar algo interessante daquilo tudo. Afinal, nada acontece por acaso.

LEONARDO: Fantástico, gostaria muito de passar por isso.

RIANA: Muito fantasioso. Parece coisa de espiritismo, Chico Xavier, essas bobagens que existem por aí.

LEONARDO: Você não acredita em nada?


Continua...




A Barca de Caronte - 5º Capítulo


APÓS UMA NARRAÇÃO DE JÚLIO SOBRE A SUA EXPERIÊNCIA AO TOMAR O CHÁ DO SANTO DAIME E SEUS EFEITOS ALUCINANTES - QUANDO ESTEVE NO ACRE - A SOLIDÃO E O DESEPERO VOLTAM AOS PERSONAGENS.
CAPÍTULO 05
RIANA: Às vezes sim, às vezes não. É de veneta. Em alguns dias acredito em Deus. Todavia, também creio que o demônio foi criado por Deus.
JÚLIO: Claro, Deus é o criador de tudo.
RIANA: Pois é. Lúcifer, Hitler, Chico Picadinho e milhões de assassinos, ladrões, políticos e toda a maldade do mundo.

LEONARDO: Ah, isso não. Ele deu o livre arbítrio, você escolhe o lado que quer ficar.
RIANA: Será? Que escolha eu tive? Sou filha de puta. Desde criança tinha que dormir na sala para minha mãe atender a seus clientes no quarto. Não podia ter medo do escuro. Lembro que, quando chovia e vinham trovões e relâmpagos, por várias vezes, fiz xixi na roupa. Com cinco anos de idade já pedia a Deus que me levasse... Eu odiava aquela vida. Quando fiz oito anos minha mãe arranjou um parceiro fixo. Era um baiano mais jovem que ela e trabalhava como segurança de boate. No início dessa relação minha situação melhorou um pouco, mas alguns meses depois tudo mudou. O escroto do baiano passou a me acariciar escondido. Era só ter chance e lá vinha ele na maldade. Passava a mão na minha bunda deixando o dedo mindinho escorregar até onde ele queria. Eu chorava sempre, pois mesmo sem entender muito bem, aquilo não me parecia normal.
Ele passou a me ameaçar. Dizia que iria falar para minha mãe que eu o tentava e, em cima do meu medo, passou a me bolinar. Eu sentia nojo, um nojo enorme, do tamanho do meu medo. Bastava minha mãe sair para comprar cigarros ou qualquer coisa, que ele vinha me assediar. Esperto, ele nunca me penetrou. Sabia que se fizesse isso iria se fuder, pois eu era uma criança e virgem. Mas, fazia outras sacanagens. Eu morria de medo de minha mãe descobrir tudo e, calada, aceitava essa invasão. Achava que ela iria me culpar, me botar para fora de casa ou coisa parecida. Com o tempo comecei a ficar agressiva em casa, na escola, no prédio. Não queria mais sair, minha mãe achou que eu estava doente e passou a ficar mais tempo comigo. O filho da puta falava que ela não se preocupasse comigo, podia ir trabalhar que ele tomaria conta de mim, e tanto ele insistiu que a convenceu. Ela retornou para a pista me deixando sozinha com o tarado.
Contudo, minha mãe estava desconfiada do meu comportamento, ela era uma mulher vivida. Certa tarde saiu e deixou a porta da área de serviço trancada sem ser chaveada. Falou que iria atender alguém e saiu bem apressada como se estivesse atrasada. Graças a Deus retornou logo em seguida e, matreiramente, subiu de elevador até dois andares anteriores e continuou pelas escadas até o nosso apartamento. Entrou em silêncio pela porta de serviço que dava para a cozinha e ficou escondida. Quando ouviu meu choro e minhas queixas se armou com uma faca de cozinha e entrou no quarto. Ainda o viu em cima da cama tentando tirar, à força, o lençol que eu agarrava procurando me proteger. Entendendo o que se passava ela partiu para cima dele com a faca, ele tentou pular para o lado, mas não conseguiu se livrar totalmente do golpe. Com um grito de ódio a minha mãe cravou a faca na bunda do tarado, golpeou várias vezes e correu para me abraçar. O vagabundo, mesmo ferido, conseguiu correr até a porta fugindo.
O sangue escorria pela casa deixando uma lista de gotas vermelhas que ia desde o quarto, passando pela sala, atravessando o corredor e terminando na porta do elevador. Depois de me livrar do bandido, minha mãe correu até a porta e trancou-a, depois foi até a cozinha e fechou também a porta de serviço. Então, correu até a mim e me abraçou com força. Chorando feito uma desesperada me pedia perdão, me beijava enlouquecida, me sufocava de tanto carinho e culpas. Depois disso, nunca mais arranjou amante para morar conosco. Muito tempo depois ainda choramingava pelos cantos da casa me sufocando de beijos e pedidos de perdão.
LEONARDO: Que barra!
JÚLIO: Eu também fui bolinado, quando criança, por um padre da capela do bairro.
LEONARDO: Que nojento, mas acontece demais.
RIANA: Mas, isso não me traumatizou, só tenho raiva quando, às vezes, lembro.
JÚLIO: Eu também esqueci, mas na época até achei que iria ser viado porque, vou confessar, eu gostava das brincadeiras, só não sei aquilo se era curiosidade ou o que era.
RIANA: Eu acho que era pura sacanagem. Você gostava da sacanagem desde criançinha, era um tarado infantil.
JÚLIO: Mas eu não era tão criança quanto você, já tinha doze anos. Gostava quando ele acariciava meu sexo, pois além do prazer do contato ele ainda me dava dinheiro.
LEONARDO: E como terminou?
JÚLIO: Ele morreu engasgado com pão. É verdade, não riam! Ele estava jantando e um pedaço de pão caiu na glote, engasgando-o. Como estava sozinho em casa, não houve quem o socorresse. Foi encontrado no dia seguinte caído sobre a mesa. Estava todo roxo, horrível. Eu era meio carola e acreditei que foi um castigo de Deus.
RIANA: Coitadinho, tão jovem e já viúvo. (Brinca com Julio)
LEONARDO: E, ainda por cima, de um padre. Que pecado! (Riem todos)
JÚLIO: Quanta besteira! Nossa, como está ficando frio.
LEONARDO: É verdade. Poderíamos ficar todos juntos, quem sabe assim nos aqueceríamos?
RIANA: Eu não. Não vou me agarrar a vocês e, ainda por cima, de graça. (Riem novamente)
JÚLIO: Nossa! Puta na vida e puta na morte.
LEONARDO: Isso é que é profissionalismo.
RIANA: É mole, ou quer mais? Ta brincando, é? Nem sei que momento é este. Para mim ta tudo como antes. É dinheiro na mão e calcinha no chão.
LEONARDO: Nossa! Como ela é “baixa”... (Resmungando)
RIANA: O que você falou?
LEONARDO: Nada. Falei para mim mesmo.
JÚLIO: Você falou que superou as bolinações que sofreu quando criança. E então, o que a levou a ficar tão amarga?
RIANA: Eu não sou amarga. Sou realista, querido.
LEONARDO: Se isso é realismo, imagine o imaginário.
RIANA: Gente, eu sou uma puta que, além de ter nascido dessa vida, vivo dela. Nada para mim é novidade. O apartamento que vivo foi deixado para minha mãe por meus avós e, depois, ficou para mim de herança. Minha mãe é que não soube fazer nada direito. Meus avós morreram muito cedo em um desastre de carro na Avenida Ipiranga, em pleno domingo de páscoa. Eu nem existia ainda, mas já peguei o bonde da miséria andando. Por diversas vezes minha mãe quis se desfazer do apartamento... ainda bem que não deu certo. Eu também pensei, por várias vezes, em passá-lo adiante, pois faz mais de seis meses que não tenho dinheiro para pagar o condomínio. Quando eu era jovem e gostosinha não faltavam clientes, mas isso agora é objeto raro. As meninas estão dando de graça em beira de cerca, além da viadagem que é uma forte concorrência. Só sobra o que ninguém mais quer. A idade chegou e com ela foram embora as minhas esperanças.
Agora, tudo para mim é possibilidade... Possibilidade de morrer atropelada na esquina? Sim! De morrer dentro de um tiroteio? Milhares de possibilidades. Pegar doenças? Todas. Acabei de fazer um teste, e querem saber o que deu? Positivo. É, sou HIV, aidética, entenderam? O que me resta? Dias melhores? Não sou louca, queridos! Sei o meu lugar. Procurei a morte? Sim. Estava cansada de tanto sofrer... Queria me livrar desse peso que é a vida. Vou para o inferno? E daí? Será que é pior do que aqui? Digam-me... Já passaram fome? Dias sem ter o que comer? (gritando) JÁ BEIJARAM UMA BOCA DE UM MENDIGO SUJO, CHEIO DE DENTES CARIADOS POR ALGUNS CENTAVOS SÓ PARA COMPRAR CIGARROS OU UM PÃO? Nunca, nunca precisaram disso. Então, o que estão fazendo aqui no meu inferno? Esse lugar é só meu? Porra, caralho, saiam do meu sonho... SAIAM!!! (Enfurecida)
JÚLIO: Calma, senhora! Calma! (Se aproxima) Tenha fé em Deus que tudo vai acabar bem.
LEONARDO: É verdade. É só ter fé. (Tenta abraçar Riana)
RIANA: Largue-me, não me toque, saia de perto de mim com a porra de sua fé. Saiam! Há muito tempo esse Senhor chamado Deus me deixou na mão. (Cai em prantos)
Silêncio total durante alguns minutos. De repente, volta o som das remadas nas águas, latidos e, agora, uivos humanos guturais e desesperados sobressaem sobre os latidos caninos.
Todos se entreolham apavorados.
LEONARDO: Acho que o tal Caronte está voltando.

JÚLIO: (calmo e explicativo) Tenho quase certeza que esse lugar onde estamos é o Hades, que significa inferno. Hades também é o nome do deus que reina com sua esposa Perséfones nesse mundo subterrâneo. É também, na mitologia grega, irmão de Zeus. Os uivos que ouvimos devem ser de Cérbero. Caronte deve nos ter trazido por todo o rio Aqueronte enquanto estávamos desacordados.
RIANA: Será? Então deve ter uma maneira de sair daqui. Ainda no ginásio, li A Divina Comédia de Dante e lembro que alguém fugia desse inferno ou Hades. (Esperançosa)
JÚLIO: Realmente, na história, entraram e saíram do inferno quatro personagens: Hércules, Psiquê, Eneas e Orfeu.
LEONARDO: Então, existe uma forma de atravessar o Aqueronte e fugir daqui! (Apontando para o rio borbulhante de lavas) Como eles conseguiram?
JÚLIO: Eles enfrentaram o Hades, ou o demônio, por amor a alguém. Amor é a única forma de vencer o demônio. (Irônico) Claro que, da maneira como se portam, vocês desconhecem esse sentimento.
LEONARDO: E você, sabe o que é o amor? (Desdenhando).
JÚLIO: Também não.
Fez- se silêncio no ambiente. Os uivos de Cérbero, as remadas de Caronte e os gritos desesperados estão cada vez mais próximos. O ar está novamente asfixiante, uma neblina começa a envolver o ambiente. Querendo afugentar o medo os três companheiros fingem que não se importam com o que acontece na caverna.
JÚLIO: (Após alguns instantes) Vocês acreditam em Deus?
RIANA: Não.
LEONARDO: Às vezes sim, depende da situação.
JÚLIO: Pois eu acredito.
RIANA: Bem, dizem que, depois da morte, todos irão encontrar com um dos dois. Mas, se estamos mortos, onde eles estão? Até aqui não deram o ar da graça, nem Deus nem o demônio.
LEONARDO: É verdade! Terrível, essa confirmação.
JÚLIO: Acho que, logo, Ele vai dar um sinal. (Esperançoso)
RIANA: E se Ele, realmente, não existir? Como você fica?
JÚLIO: Essa hipótese não existe para mim. Sou tão feliz acreditando na existência divina que, se Ele não existir, eu o crio. Não imagino a minha vida sem o Criador. E ainda acredito na eternidade, para mim toda criação é eterna. (Levanta-se irritado)
RIANA: Vã filosofia de menino rico.
JÚLIO: Não vou discutir minha fé com você.
LEONARDO: Tudo é uma questão de fé... uns fedem menos outros fedem mais.
Todos riem.
JÚLIO: Você é muito engraçado, Leonardo. Quem é você, de verdade?
RIANA: Além do acidente, porque se matou?
LEONARDO: (Alterado) Eu nunca me mataria... foi um acidente.
RIANA: Claro que não. Todos nós nos suicidamos.
JÚLIO: Vocês sim. Porém, foi uma forte dor de cabeça que me levou a exagerar na dose de comprimidos. Era uma dor insuportável.
RIANA: Vocês podem mentir para si mesmos, mas para mim alta velocidade e overdose são suicídio tanto quanto pular do alto de um edifício.
LEONARDO: Não acho. Eu já estava acostumado com alta velocidade... Era apenas mais um prazer.
JÚLIO: Eu não queria morrer, minha vida estava muito boa. Estava bem casado, tinha filhos, cachorros, etc. Não tenho dívidas de que não existia motivos para que eu me matasse.
RIANA: E porque tomou tantos analgésicos com álcool? Todo mundo sabe que é um coquetel mortal, várias pessoas já morreram assim.
JÚLIO: Eu sei de tudo isso, mas o que eu queria era me livrar da dor de cabeça. Estava insuportável.
LEONARDO: Aqui, a única suicida é você. Se estamos mortos não deveríamos estarmos juntos. O suicídio é um pecado mortal.
RIANA: (Gargalhando) E o que você sabe de pecado ou de Deus? Eu assumo que não acredito em nada, um de vocês há alguns minutos atrás falou que às vezes era totalmente descrente.
A luz do farol do fim da caverna volta a clarear o ambiente. Começa a cair do céu uma chuva fina. Os morcegos começam a voar dentro da caverna. Riana começa a gritar e correr em círculos. Júlio e Leonardo correm e a abraçam protegendo-a dos animais. Após alguns minutos a chuva passa, os morcegos sobem em direção ao cume da caverna e somem. Riana, agora mais calma, sorri de agradecimento aos homens e senta-se no chão. Julio senta ao seu lado. Leonardo, de pé, continua falando.

LEONARDO: Realmente, eu falei e continuo falando bobagens. A vida inteira eu falei e fiz bobagens. Acho que é por isso que estou nesse lugar. Devo estar pagando por tudo, mas já passei por momentos em que senti a presença de Deus, ou de algo bem grandioso. Mas, na maioria das vezes, não consigo sentir nada pelo que não entendo ou por aquilo não vejo.
JÚLIO: Eu, ao contrário, sinto a presença de Deus em todo lugar. Dentro do avião quando piloto entre as nuvens e, principalmente, quando vou a igreja.
LEONARDO: Nunca senti o que falam aquilo que sentem os religiosos nas igrejas... e olha que me esforço bastante.
RIANA: Eu tenho motivos para não acreditar em nada. Nunca, nenhum santo, anjo ou demônio me estendeu a mão para me levantar na rua ou, sequer, me empurrar de escada abaixo. Sempre me levantei sozinha.
LEONARDO: Certa vez, muito tempo atrás, passei por uma situação muito estranha. Acho que foi o que, de mais próximo, vivenciei de uma experiência de fé. Querem ouvir?
RIANA: E o jeito? Estamos todos juntos nesse buraco.
JÚLIO: Nos conte! É bom para passar o tempo.
RIANA: Que tempo? Isso, aqui não conta.
JÚLIO: Você é muito chata, se não estivesse morta juro que a mataria. (Todos riem)
LEONARDO: Essa foi ótima. Encontrava-me de férias em Natal, no Rio Grande do Norte, juntamente com um grupo de amigos. Certa manhã, fomos seduzidos por um pescador para irmos, no seu barco, conhecer a famosa ilha de Fernando de Noronha. Acertamos o preço e combinamos de embarcar nessa aventura. Estávamos em um grupo muito animado. Eram três casais de amigos, estudantes da mesma turma na faculdade de Direito da Bennet, lá no bairro do Flamengo.

RIANA: Você estica muito a história, que coisa chata.
LEONARDO: Só sei contar assim, dando vida ao assunto.
RIANA: Para mim isso é frescura.
JÚLIO: Deixe o rapaz contar a estória, larga de ser pentelha.
RIANA: Agora deu... Caronte não veio, mas mandou o secretário para me encher. Larga do meu pé!
LEONARDO: Bem, quem não quiser ouvir atravesse o Aqueronte. (Todos riem)
JÚLIO: Continue.
Barca de Caronte - 6º Capítulo



NO CAPÍTULO ANTERIOR DISCUSSÕES INTERMINÁVEIS DEIXAM OS PERSONAGENS AINDA MAIS ENLOUQUECIDOS COM O QUE SE PASSA AO REDOR. ESTARÃO ELES DORMINDO OU ACORDADOS? VIVOS OU MORTOS?

6º CAPÍTULO
LEONARDO: Bem, após passarmos o dia inteiro comemorando não sei o quê, embarcamos, naquela mesma noite, nesse barco pesqueiro de aproximadamente uns sete ou oito metros de tamanho. Era um barco daqueles pequenos que tem uma cabine de madeira com três lugares, tipo cabine de camionete. No barco havia lugares, em cima, para quatro pessoas, as demais ficavam na parte interna ou no porão.

Apesar de pequeno, o barco possuía uma parte inferior onde ficavam duas pequenas camas presas as laterais; havia ainda uma porta de madeira separando aquele pequeno ambiente: uma mistura de quarto, cozinha e um pequeníssimo banheiro com o vaso e uma pia. Na cozinha, apenas um fogão de duas bocas fixado na parede e um bujãozinho de gás; após a porta de madeira via-se um espaço adaptado para um freezer onde eles colocavam o pescado; do lado de fora, por trás da cabine, na popa da embarcação, viam-se dezenas de gaiolas de madeira usadas na pesca de lagostas.
Bem, saímos de Natal aproximadamente às vinte e duas horas; estava uma noite linda, não tinha lua, mas havia estrelas e planetas; começamos a tentar decifrar constelações... Eu cheguei a ver apenas Escorpião e mais nada. Um vento suave e o barulho da água sendo singrada pelo barco nos excitavam. Alguém abriu uma garrafa de uísque e começamos novamente a festa.
Saímos da cidade mar adentro; depois de duas horas de navegação o tempo mudou, começou a chover. Uma chuva forte batia no vidro da cabine fazendo com que não se enxergasse mais nada no céu; as estrelas sumiram; o barco nos jogava para os lados; comecei a enjoar; acendi um cigarro para ver se a sensação de enjôo passava, mas, que nada, foi muito pior; abri a portinhola que dava para fora da cabine e, me segurando bastante para não cair no mar, tentei vomitar, mas não consegui; decidi usar a pia do pequeno banheiro lá de baixo, mas havia um problema: como seria descer a escadinha sem se machucar?
O barco parecia uma folha ao vento; as ondas o jogavam para todo lado. Olhei para a cara do piloto e vi que ele estava apreensivo; seu ajudante, no canto do banco, parecia que rezava de olhos fechados. Minha amiga, sentada ao lado dele, estava com o olhar apavorado e fumava sem parar; quando cheguei a pia vomitei em todo lugar, menos nela. Com isso, as pessoas que estavam sentadas nas camas esqueceram, por um momento, do medo que estavam sentindo e deram uma boa gargalhada com essa minha epopéia do vômito. Em certo momento o barco diminuiu o balanço e relaxamos, todos. Contudo, o pior ainda estava por vir.
RIANA: Você tem que ser advogado mesmo... é muito enrolado.
JÚLIO: Ou escritor... fantasia demais o assunto.
LEONARDO: Tudo bem, se quiserem encerro por aqui, mas perderão o melhor.
JÚLIO: Claro que não.
RIANA: Convencido, o rapaz! Vá lá, termine sua história.
LEONARDO: E então, quando parei de vomitar respirei bastante e melhorei. O meu amigo Ney levantou da ponta da cama e me ofereceu o lugar; fui até lá e sentei; quando olhei para meus pés vi que havia água no chão do barco; de inicio achei que fosse respingo da tempestade que se abatera lá fora e que, graças a Deus, havia terminado. Decidi ir acompanhando com o olhar até onde havia água e vi que ela saia por baixo da porta que separava o quartinho do freezer de onde estávamos. De repente, todo mundo notou que algo estranho estava acontecendo. Levantei-me da pequena cama e fui abrir a porta de madeira. Nossa, me arrepio até hoje quando lembro essa situação... vejam meu braço!
RIANA: Termina maluco, já estou enlouquecendo de curiosidade.
JÚLIO: Arre, que demora!
LEONARDO: Dentro da sala havia uma verdadeira enxurrada entrando pelo bico do barco, pois ali, bem no início, havia um buraco e a água entrava rapidamente. Ao abrir a porta, a água, que estava presa, invadiu o local onde estávamos. Rapidamente, todo mundo, atropelando-se, correu para a escada que levava até a cabine superior. Fui o último a subir. Quando subi percebi que os meus amigos estavam todos fora da cabine, exatamente na parte aberta onde ficavam as gaiolas. Olhei para o barqueiro e perguntei pelos salva-vidas, ele falou que só haviam cinco, sendo que, um seria dele e o outro do seu ajudante. Começou logo uma confusão: uns gritavam que deveria ser por sorteio, outros alegavam que a culpa pelo barco estar afundando era do barqueiro, alguns diziam que aquela merda não deveria ter saído do porto... todo mundo falava ao mesmo tempo. O ajudante do barqueiro que, já estava vestido com um salva-vidas e segurava outro, colocou outros três ao lado do banco da cabine. O barqueiro levantou a camisa e, mostrando a cintura, exibiu um revólver para dar a entender que não adiantava discutir; ficamos alguns segundo em silêncio que pareceram horas.
O barco já estava com água chegando até a cabine. Alguém rezava alto; as mulheres choravam; o auxiliar do barqueiro, mesmo estando vestido com o salva-vidas, chorava desesperado; subi para onde estavam meus amigos e vi que, do lado de fora, não se via nada, era uma escuridão total. Havia algumas estrelas no céu, mas nem sinal de luzes de cidade. Vi dois garrafões de água mineral, daqueles maiores, cheios, no convés do barco.
Como ninguém tomava nenhuma iniciativa, perguntei quem não sabia nadar e nenhuma das três garotas que estavam conosco sabia; ficou um clima pesado; ouvia-se a respiração angustiada de todo mundo; o barqueiro gritou, de dentro da cabine, que iria fazer uma manobra no barco, mais precisamente uma guinada para retornar para Natal. Segundo ele, até o barco naufragar, se aproximaria o mais que pudesse da costa; eu entreguei os salva-vidas às moças sob os olhares estupefatos dos meus amigos; andei rapidamente até os garrafões e esvaziei um deles; o meu amigo Ney entendeu e correu para esvaziar o outro.
Paulinho ficou nos olhando, surpreso. Voltei-me para ele e falei: “Vamos tentar ficar unidos - eu, você, Ney e os garrafões - vamos nos amarrar nos pulsos com os cintos e esperar pela sorte”. Paulinho e Ney me abraçaram e fizemos como combinamos. No momento seguinte, fomos jogados uns contra os outros. O barqueiro fez a manobra que dissera; o barulho do motor do barco era a única coisa que dava sentido àquela situação angustiante. Eu ficava a todo o momento achando que estava sonhando, e que aquilo não estava acontecendo. Não era possível! Era muito ruim pra ser verdade. Eu era muito jovem para morrer, estava com apenas vinte e três anos. Uma angustia terrível invadiu o meu peito, uma sensação totalmente desconhecida, só sei que era muito ruim... queria chorar, mas não caia, sequer, uma lágrima dos meus olhos; uma saudade enorme, de tudo, invadiu o meu corpo; senti febre, muita febre; a língua embolava.
Nesse momento, com essa quantidade de estranhas sensações invadindo o meu corpo, fui quase jogado para fora do barco pela manobra do barqueiro; ele conseguiu mudar bruscamente a direção do barco, porém, o barco adernou totalmente ficando com a lateral quase que submersa; adernou num ângulo que nos deixou quase que deitados sob a lateral da cabine. Agarrávamos-nos a qualquer coisa que pudesse nos sustentar.
Graças ao Ney não perdemos um dos garrafões, pois ele o prendeu entre a parede da cabine e o seu corpo e, com a outra mão que estava presa ao meu pulso, conseguiu me segurar para que eu não fosse jogado ao mar. Foi um desespero total, todo mundo gritava e, para piorar ainda mais a situação, voltou a chover.
Os grossos pingos de chuva batiam no rosto como se fossem agulhas. Nossa, como doía! Lentamente, o barco foi afundando com o motor ainda funcionando. Até hoje ainda tenho pesadelos com aquele barulho.

Agarrei-me ao máximo no garrafão, pois sabia que ali estava minha salvação; Ney continuava colado comigo. Com o nosso peso parecia que íamos afundar; colocamos o garrafão entre nós dois - na altura do peito – segurando-o com um forte abraço e prendendo-o com o queixo para que não escapasse. Não falávamos nada; a escuridão não deixava sequer ver o branco dos olhos um do outro; as ondas nos jogava para cima e para baixo como se fossemos marionetes. Em pensamento, eu só pedia a Deus para que não deixasse meu corpo ser jogado nas pedras da praia. Pensava nas ostras me cortando, desespero total......



A Barca de Caronte - Capítulo Final






O NAUFRÁGIO DE LEONARDO DEIXOU O CAPÍTULO ANTERIOR COM SABOR DE AGUA SALGADA E POR ALGUM TEMPO TIROU A ATENÇÃO DO LUGAR ONDE OS PERSONAGENS SE ENCONTRAVAM. DE REPENTE, UM CORPO QUE CAI!!! SUICIDIO OU ACIDENTE? VEJA O QUE LHE RESERVA ESSE FINAL DE HISTÓRIA

FINAL

LEONARDO: (Continuando a narração do seu naufrágio) Por um momento a chuva passou. Algumas vezes íamos de encontro a outro náufrago; eu achava que era um peixe grande, talvez um tubarão, e ficava esperando a mordida. A água estava morna; engoli, sem querer, alguns goles salgados... Esquecia a boca aberta. Ney rezava sem parar; dizia a Deus que, se escapasse, seria uma pessoa melhor; eu prometi deixar de fumar a partir daquele instante.

Em meio ao pesadelo tranquilizei-me totalmente, porém, não soltei a garrafa plástica; relaxei minha mente; acho que atingi o que tantos budistas buscam. Senti que um entorpecimento tomou conta do meu corpo; achei que estava morrendo. Algo muito doce, exageradamente doce, tomou conta de mim. Sabe quando você come um doce e repete? E novamente repete até enjoar? Até ficar com uma insuportável sensação de enjôo?

Foi o que senti. Contudo, ao contrário, não ficou nada insuportável, ficou agradável. Senti o meu corpo se desprendendo de mim, mas não era nada dolorido ou traumático, era gostoso. Fiquei durantes alguns momentos me vendo de cima, parecia que eu estava no alto e vendo-me agarrado ao garrafão e ao meu amigo Ney lutando, ambos, pela vida. Essa sensação pareceu durar horas. Fui interrompido por alguém que me agarrava por trás e gritava para que eu soltasse o garrafão, pois estava tudo bem. Eu não entendia nada, só queria continuar lá em cima com aquela sensação boa que me invadira há alguns instantes.

De repente, me vi dentro de um daqueles botes salva-vidas, infláveis, juntamente com três homens, Ney e duas das meninas. Eles me perguntavam alguma coisa, mas as vozes estavam muito distantes. Um torpor invadiu o meu corpo e desmaiei; acordei dentro de um rebocador da Petrobrás de nome Rondon que, por acaso, naqueles dias, exatamente no horário do nosso naufrágio, estava passando próximo, transportando uma plataforma de Recife para Fortaleza.

O rebocador cruzava nosso caminho quando um dos tripulantes – ajudado pela cor laranja dos coletes salva-vidas - conseguiu enxergar uma das meninas no momento em que o refletor do rebocador passou a luz sobre ela no mar. Milagre! Aquele não era nosso dia; todos foram salvos; na euforia esqueci minha promessa; pedi um cigarro a um marinheiro. Foi a tragada mais gostosa da vida. Doce pecado.


O rebocador mudou o curso e levou-nos até próximo a Natal onde um barco menor, da capitania dos portos, nos conduziu para a terra firme. O tempo que fiquei naufragado no mar não durou meia hora, mas pareceu uma noite interminável. Fiquei muito tempo me perguntando o que foi aquela sensação tão fantástica que senti quando estava no mar.

Perguntei a vários religiosos, mas ninguém soube explicar; muitos tentavam me fazer acreditar que seria efeito de bebida alcoólica ou do trauma da morte próxima, mas sei que não foi. Hoje, já não me preocupo com isso; acredito que, naquele dia, morri durante algum momento. Entretanto, aqui, não sinto nada parecido, portanto ou estou sonhando, ou estou no sonho de alguém.
RIANA: Sua história é forte, mas estou com muito frio. Meu corpo todo está doendo... vou ficar deitada aqui mesmo. Estou sem forças até para levantar.

JÚLIO: Eu, ao contrário, estou com muito calor, parece até que tenho febre. Nossa! Parece que minha cabeça está fervendo.

LEONARDO: Eu também sinto o meu estomago fervendo e minha boca está seca. Nossa, que calor! Está assando.

RIANA: Devo estar morrendo; minhas mãos estão um gelo. Vejam! Sintam! Meu Deus, o que e isso? (Chora) É angustiante! Estou toda gelada e não consigo me movimentar.

LEONARDO: Calma, senhora! Calma! Vou lhe abraçar. Talvez a minha febre lhe esquente. Venha também Júlio, talvez assim ela melhore.

JÚLIO: Ok! Meu Deus, ela está gelada!

RIANA: Obrigada! Estou muito cansada... Preciso descansar.

JÚLIO: Tente dormir! Irá acordar bem melhor, você vai ver. Durma!

LEONARDO: Acho que ela dormiu... ou morreu? O que será isso tudo? Não entendo mais nada.

JÚLIO: Nem eu, nem eu... (Toca no pulso de Riana e assusta-se) Meu Deus, ela está gelada! Acho que está morta, mesmo!

LEONARDO: Agora só falta aparecer Caronte para levar o corpo.

JÚLIO: Que loucura é essa, meu Deus? (Levanta-se e caminha em direção ao Aqueronte)

LEONARDO: Caronte! (Gritando) Venha logo, seu demônio dos infernos. Queremos atravessar o Aqueronte... Venha... Venha... (Grita desesperado, repetidas vezes)

JÚLIO: Será!!!!

O barulho da queda foi seco e forte. Quem se encontrava a uma distancia de até 200 metros voltou-se, instintivamente, para a fachada do edifício Grécia na Avenida Consolação, 6163, na esquina com a Paulista onde um corpo ainda estremecia durante alguns segundos para depois ficar inerte no meio da rua. Suicídio ou acidente? Repetem entre si as pessoas que foram atraídas pelo barulho da queda de um corpo do alto do 18º andar. Algumas direcionavam o olhar para o alto do edifício, outras para o corpo da infeliz criatura largada ao chão de cimento. Logo, várias câmeras de celulares começam a filmar e fotografar o corpo que a garoa fina insistia em molhar e esfriar naquela calçada em pleno centro de São Paulo.

Garoava desde cedo e, naquele final de tarde, a chuva fininha levava o sangue vermelho que saia pelos ferimentos da cabeça da vítima e escorria, como um fino rio vermelho, pelas calçadas em direção ao meio-fio do calçamento. Carros tentam parar e motoristas erguem os pescoços dentro dos veículos, mas o buzinaço que se inicia afasta a curiosidade, e o trânsito, caótico, volta a fluir na Consolação.

Do edifício Grécia dois homens saem correndo e um terceiro permanece na portaria como que vigiando a entrada. A chuva começa a engrossar. A pequena multidão cerca o cadáver e várias pessoas, munidas de celulares, fotografam o corpo sem vida e molhado. Um travesti, com uma voz afetada, comenta: “A calcinha é Du Loren, coisa chic.” Todos riem e, sem se importarem com a chuva, continuam com o burburinho. Ninguém se afasta. Os dois homens que saíram do edifício Grécia conseguem passar pelo meio da multidão e, abaixados diante do corpo, começam a falar.

JÚLIO: É uma mulher!

LEONARDO: Caronte, o nosso porteiro, já ligou para a Polícia.

JÚLIO: Eu vi o corpo passando pela minha janela, foi horrível a sensação.

LEONARDO: Eu ouvi o barulho, um baque surdo, como se um saco de cimento fosse jogado do alto. Acho que fomos os primeiros a descer do prédio. (Olha em torno. A multidão começa a dissolver-se)

JÚLIO: Será que ela ainda está viva?

LEONARDO: Deixe-me ver... (Verificando o pulso) Acho que está morta.

JÚLIO: Você a conhecia?

LEONARDO: Já a havia visto, no prédio.

JÚLIO: Eu também a encontrei algumas vezes no elevador. Sempre ficava me paquerando. Caronte comentou que o nome dela é Riana. Disse também que ela vivia de prostituição.

LEONARDO: Fala sério, meu! Com essa idade? Acho que nem drogado eu encarava.

JÚLIO: É, coitada! Agora não faz mais nada. Vou subir e ver se consigo um lençol para cobrir o cadáver. Sabe como é, o ITEP demora um tempão para vim buscar.

LEONARDO: Vá lá! Aproveite e veja se consegue uma vela. Eu ficarei aqui com ela lhe esperando, enquanto isso rezarei um Pai-Nosso.


A chuva continua lavando a calçada e levando o sangue da mulher ladeira abaixo. As últimas pessoas, satisfeitas da curiosidade, retornam à parada de ônibus. A chuva pára. Surge uma lua cheia e clara desafiando o sol que, pálido, vai se despedindo por trás das nuvens dispersas do final da tarde.

O rapaz acende um cigarro e reza sozinho diante do corpo.


FIM

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