Nefertiti, a gata Egípcia
De Junior Dalberto
O sol do meio-dia
daquela quinta-feira estava tão quente que castigava até a sombra de quem se
arriscava a sair de casa àquela hora, as folhas das árvores sequer se moviam.
Nenhuma brisa no ar, a cidade estava absorvida pelo calor, um calor modorrento
que convidava apenas para se sentar ou deitar-se em algum lugar assombreado como
único refúgio para esse calor dos meses de janeiro na cidade do sol e bebericar
algo gelado.
No quintal de sua
casa, sobre a sombra de uma frondosa e colossal mangueira, Clenor balançava-se
preguiçosamente na sua rede amarela de ricas varandas decoradas em motivos
árabes, presente do amigo jornalista e poeta Josean no seu último aniversário.
Vivia cercado pelos seus dezesseis gatos dos quais conheciam todos pelos nomes,
cujos atendiam curiosamente quando chamados. Sempre os batizavam com nomes de
amigos. Uma esguia gata negra cria de uma possível mistura de siamês com gato de
rua chamava-se Angélica, outro gordo e preguiçoso, legítimo gato angorá atendia
por Jesiel, uma gata pequena siamesa comprada numa feira de animais em São Paulo
com pedigree registrado e colocado em uma moldura na sala era um dos seus xodós,
tinha o nome de Delma e por ai vão as nomenclaturas dos bichanos, já os
vagabundos de rua eram apelidados com nomes dos amigos das noites potiguares.
Havia Angélica, Lula, Jarita, Civone, Ricardo, Gleydson, Juniors (são três),
Dimas, Zezo, Luana, Sonia, Delma, Castelo, etc. A maioria eram gatos apanhados
em suas andanças pela cidade de Natal ou nas cidades vizinhas quando Clenor
viajava com seus espetáculos teatrais.
Não conseguia
resistir aos apelos dos bichanos em suas miadas vagabundas pelas vielas e
esquinas. Além dos gatos potiguares, oriundos das Quintas, Vila de Ponta Negra,
Rocas, Solidade II, Alecrim, Cidade da Esperança, etc. havia um gato cearense,
um mossoroense, outro caicoense, um paulista e até um do Maranhão ele possuía,
esse, por exemplo, trouxe de um terreiro de macumba lá na praia do Calhau.
Gostou do olhar misterioso do gato que estava deitado ao lado de uma estátua de
uma pomba gira negra. Astutamente, Clenor passou com a sua enorme bolsa de couro
de carneiro que dentro cabia o mundo inteiro, olhou para os dois lados, abriu a
bolsa, piscou para o gato e logo o danado do felino pulou dentro sem um miado. O
bichano logo tornou-se potiguar e recebeu o nome de Mano, veio na viagem sem dar
um gemido, só ronronava e dormia, não sabia fazer outra coisa a não ser dormir
pelos cantos da casa, era o seu hobby preferido. Mano nunca conseguiu se
socializar com os outros gatos, se apossou até de uma estatua de São Jorge que
havia em cima de um aparador na sala do dono, se enroscava ao redor dela e de
lá só descia para comer ou resolver suas necessidades básicas. Sempre que
solicitado, o gato Mano saltava para o aparador e caía certeiramente nos braços
de Morfeu.
Clenor gastava uma
fortuna em dinheiro com seus bichanos, com comidas, banhos, veterinários, etc.
inclusive, pagava até um sobrinho para cuidar dos seus felinos sempre que
precisava se ausentar da cidade. Amava demais seus animais e todos eles
correspondiam à altura. Era incrível a festa que esses animais faziam quando o
jovem Clenor chegava de viagem; todos pulavam em cima do seu dono, ronronavam,
miavam de alegria, até a vizinhança conseguia notar quando ele estava em casa e
para Clenor isso se resumia em uma nobre palavra, gratidão.
Naquele início de
tarde, alguns pássaros da espécie rolinha desafiavam os gatos namorando
ruidosamente sobre os arames da cerca farpada, os bichanos no chão ficavam
salivando, olhando os barulhentos bípedes emplumados.
E foi com todos eles
deitados sob a rede, com exceção do gato Mano que se mantinha dormindo na sala e
também a delicada gata Delma que dividia a rede com seu dono, todos ronronavam e
fingiam dormir, enquanto Clenor se balançava impulsionando seu pé esquerdo de
encontro ao tronco da árvore em um preguiçoso vai e vem, quando subitamente
ouviu a campanhia tocar, por um momento achou até que estava sonhando, mas a
insistência do toque fez com que o artista levantasse mal-humorado e soltasse um
tremendo palavrão.
- Isso é hora de
alguém vir me visitar? E com esse calor infernal. Merda! Deixou a gata Delma se
contorcendo na rede e enfiando irritada as unhas no travesseiro. Caminhou até o
portão.
Diante do lindo portão de ferro de
lei, artisticamente trabalhado com motivos orientais, cujo se via um Buda
cercado de pássaros voando sobre a cabeça e coincidentemente gatos deitados aos
pés, adquirido em uma demolição de um antigo sobrado no elegante bairro de
Petrópolis da família Mariano de Medeiros, encontrava-se sua grande amiga
escritora e eterna modelo Angélica que mesmo com o passar do tempo ainda
mantinha o peso da época dourada e não perdia sua beleza “angelical”, marca
registrada de quem um dia já desfilou pela Saint Laurent, entre outros estilistas
famosos nas passarelas do mundo inteiro como Paris, Milão e Nova York, no famoso
circuito Elisabeth Arden dos anos 80.
Acompanhada de um rapaz franzino de cabelos bem curtos e um olhar de águia que
lhe foi apresentado como Gugu do Pium, estacionava sua pequena moto Yamaha de 50
cilindradas enquanto Angélica segurava com carinho uma cesta de vime coberta por
um tecido de seda vermelha e sorria graciosamente, vestindo elegantemente um
velho jeans surrado combinando com uma camiseta básica branca com os dizeres “Peace and Love” e um tênis transado,
contudo no dedo anelar da mão direita usava um solitário diamante que faiscava
ao sol, dizem que essa jóia foi presente de um affair em Londres com um ex-beatles. Ela
nunca confirmou o romance, mas também não nega esse assunto, o qual percorreu o
mundo inteiro nos tabloides de fofocas em décadas passadas.
Incomodado pelo
calor, Clenor foi logo abrindo o portão gritando e gesticulando bastante com as
mãos.
- Entrem logo que tá
um calor de rachar, vamos, coloquem logo a moto pra dentro, pois aqui, tudo que
fica do lado de fora o dono leva!
Angélica com seu
andar leve feito passarinho, deu um beijinho no rosto do amigo e o cumprimentou
docemente:
- Tudo bem? Já foi
logo pedindo licença educadamente e entrando.
Gugu com a cara meio
enfezada foi manobrando a moto em direção ao portão e entrou em seguida. Clenor
foi logo passando o cadeado no portão após a entrada das visitas.
- Mulher, o que tu
vem fazer aqui nesse fim de mundo numa hora dessas? Caminham juntos até uma
árvore no quintal.
Clenor foi logo
pegando dois tamboretes de madeira que estavam pelo caminho e posicionou-os ao
lado da rede, afastou os gatos com um gesto, sentou na rede e esperou a
resposta.
Angélica era sempre
tão delicada e educada que ninguém jamais imaginaria sair uma grosseria daqueles
lábios pintados de vermelho. Falando suavemente enquanto sentava graciosamente
em um dos tamboretes, tendo a mesma iniciativa imitada por Gugu, ela
falou:
- Querido amigo, estou precisando de
sua ajuda, pretendo passar um bom tempo em Lhasa junto com meu amigo
Gugu.
-E onde diabo é Lhasa? Indagou
Clenor.
- Tibete, Darling, no Tibete! Vamos em busca da
verdadeira purificação. Disse Angélica, deixando Clenor bastante surpreso.
- Mas você não foi o ano passado
para Nova Delhi na Índia, Paquistão, Capádocia e Egito em busca do seu eu? Chegou até ser presa no Cairo por
causa de uma bíblia inglesa de capa vermelha!
- Saiu até no fantástico, não foi? Falou Gugu com uma
voz nasalada que até então permanecia em silêncio.
- Humm, o viado fala? Entreolham-se
todos diante da pergunta do Clenor e dão uma gargalhada.
- Foi sim, Clenor mon coeur! Gugu cherie! Não precisavam me lembrar desse
pequeno detalhe, foi apenas um mal entendido, algo sem importância, coisas de
birra de uns guardas egípcios iletrados, mas, voltemos ao que interessa. Clenor
Darling, estou indo com o Gugu em
busca do Dalai Lama, pois queremos toda a iluminação que temos
direito.
- Isso! Enfatiza Gugu.
- Queremos sair de lá pessoas bem
melhores, com o rosto iluminado! Vociferou Gugu.
- Querido, você? Só se papai do céu
resolver milagrar, você é cosmeticamente estranho, talvez nem um bom cirurgião
plástico resolva seu problema. Disse Clenor.
- A essência da criatura, eu quero a
essência da luz, isso você jamais vai entender. Falou Gugu com um certo
desdém.
Interrompendo as farpas, diz
Angélica:
- Isso não vem ao caso, Clenor Darling, não foi para isso que viemos
aqui. Abre a bolsa e tira um leque indiano e começa a se abanar para afastar as
moscas que começam a aparecer.
Gugu vira o rosto para o lado
contrário onde se encontra Clenor e começa a murmurar um mantra.
- Essa louca está me jogando praga,
Angélica? Olha que eu tenho Xangó de frente e Omolu de costas, não vem não que
volta, tá nega? Clenor aponta seu dedo indicador para Gugu.
- Calma amigo, não é nada disso, ele
está apenas murmurando um mantra da desculpa, está pedindo desculpas ao ar, as
plantas, aos gatos, a você e a tudo que nos cerca por haver se excedido. É o
inicio do processo da purificação, Lhasa é a coroação desse processo. Fala
Angélica com propriedade sobre o assunto.
- Tudo bem, tudo bem, desculpas
aceitas e peço também pelo meu excesso. Ironiza Clenor.
- Mas o que vocês querem comigo?
Lhasa não está nos meus planos e a minha próxima viagem é para Sousa na Paraíba,
preciso levar o espetáculo “A pequena
Sereia” no próximo sábado e domingo para a criançada de lá. Fala Clenor
enquanto sua gata Delma volta a circular entre suas pernas.
- É isso! Fala Angélica estendendo a
cesta de vime e teatralmente retira a toalha vermelha de seda descobrindo uma
linda gata de um ralo pelo dourado, macérrima, com o pescoço parecendo maior que
o próprio corpo que vendo a luz do sol, estende-se sobre a cesta como uma jiboia
para se ambientar, enquanto seus dois enormes olhos negros e amendoados observam
tudo desinteressadamente. Devia pesar no máximo um quilo e meio e tinha
aproximadamente sessenta centímetros de comprimento da cabeça ao rabo. Em
seguida, olha em silêncio para o ambiente durante alguns segundos e depois volta
a se deitar na cesta de vime, puxa o tecido de seda com os dentes, cobre-se e
semicerra o olhar.
- Essa é a Nefertiti, a minha gata
egípcia, vinda contrabandeada do Cairo, esse foi o verdadeiro motivo do
incidente diplomático e não uma bíblia vermelha, como vocês pensavam. Enfatiza
Angélica.
- Mas o que saiu no jornal foi uma
outra história. Fala Clenor.
- No fantástico falava da bíblia! Insistiu
Gugu.
- Pois então Darling, paguei cinco mil dólares para a
imigração do Cairo como multa para poder trazer a Nefertiti, foi amor à primeira
vista e presente de um Sheik árabe em um passeio que fizemos pelo vale dos
faraós, mas isso é outra história, não tenho tempo para contar agora, vamos
viajar logo mais a noitinha e por isso, resolvi lhe dar de presente a minha gata
egípcia para juntar ao seu harém. Que tal? Fala Angélica.
- Amei Angélica, amei mesmo! Mas,
quando você voltar vai querer ela de volta e vai ficar difícil para mim, pois
fico muito apegado a todos eles. Como se entendessem o que Clenor falou, os
gatos correram para se aninhar entre suas pernas.
- Veja Angélica, você tinha razão,
parecem até gente, sinto que a Nefertiti está entregue em boas mãos. Fala
Gugu.
- E então, quanto a isso, Clenor Darling, não se preocupe, pois depois do
Tibete talvez eu deva lutar pela salvação dos ursinhos pandas. Fala teatralmente
olhando para os bichanos como uma atriz diante de uma plateia ao final do
espetáculo.
- Só não se incendeie!
Brincadeirinha, amiga! É que os monges tem mania de atear fogo nas próprias
vestes. Falou Clenor.
- Com eles dentro... Murmura
Gugu.
- Se for para purificação do
planeta, sou capaz de pegar fogo!!! Angélica termina assim o
assunto.
- Então, vamos lá na cozinha tomar
um suco de cajarana que acabei de fazer? Convidando suas visitas.
- Vamos brindar em comemoração a
nova inquilina, Nefertiti a rainha dos bichanos, acho que dá até um texto
infantil! Fala Clenor levantando-se da rede e gesticulando para que ambos o
sigam até a sua cozinha.
O trio é seguido por
todos os bichanos, eles se enroscam nas pernas dos convidados enquanto caminham,
Gugu quase tropeça e pensa logo em chutar um deles, mas imediatamente desiste da
investida, pois logo percebe o olhar intimidador lançado por Clenor.
- Esse rapaz deve ter desenvolvido
um senso felino, parece adivinhar tudo. Pensa Gugu.
Depois de tomarem o
delicioso suco de cajarana que estava gelado ao ponto e ainda de comerem uns
sequilhos de goma, a dupla iluminada resolveu partir, Angélica colocou um olhar
choroso sobre a gata e ela sequer devolveu, continuou dentro da cesta, alheia ao
mundo lá fora. A exótica criatura tinha em seu pescoço uma coleira de prata
cravejada com alguns brilhantes e seu nome gravado em ouro.
- Clenor, se eu fosse você, mandaria
gravar seu telefone na coleirinha, o que você acha? Bem, querido, tenho que ir,
tchauzinho pra você, bebê! Não tenho mais tempo! Virou-se Angélica deixando
escapar uma furtiva lágrima.
- Desapego mulher, desapego!
Repreendeu Gugu.
- Obrigada amigo, mas é muito
difícil para eu me separar de Nefertiti. Mas é isso mesmo, você está coberto de
razão, o momento é de desapego, desapego geral e irrestrito. Concorda Angélica.
Vão saindo em
direção ao portão e despedem-se com um beijo. Clenor, agora com a cesta da gata
egípcia na mão direita, fecha o portão com a esquerda enquanto assiste a moto
levando as visitas e deixando a poeira do meio dia no ar.
- Que papai do céu os acompanhe! Ai,
essa minha amiga é muito louca, mesmo! Pensa Clenor enquanto vai entrando em
casa.
Na sala todos os
gatos já se encontram como que orquestrados, deitados no único sofá sobre suas
almofadas, não deixando um único espaço livre para o dono da casa sentar. Clenor
caminha até o sofá e empurra gentilmente os gatos Gleydson e Jesiel de lá,
coloca a cesta de vime sobre o colo e retira Nefertiti de dentro.
- Nossa, como é levinha! Diz Clenor,
admirando a beleza da gata que se deixa levar e ronrona em seu colo.
- Deixa ver o que tem mais aqui
dentro. Meu Deus, que almofada mais chique! Toda em seda prateada, com o nome
bordado em dourado e um prato de comida em prata, essa Nefertiti é digna de uma
rainha. Mas aqui, querida, você vai ter que conviver por igual, entendeu minha
linda? Fala seu dono admirando toda a sua excentricidade.
- Nossa! Como é bela minha gata
egípcia! Acaricia o comprido pescoço da gata que permanece imóvel, apenas
acompanha o carinho do dono com o movimento imperceptível das pupilas.
De um salto, a gata
pula do seu colo e caminha elegantemente feito uma bailarina até diante do
aparador, que em questão de segundos salta e cai ereta sobre as quatros patas em
cima de uma pedra de mármore branca, permanecendo nessa pose diante de Clenor.
- Ó Nefertiti, com
toda sua pompa e realeza, o que você tem, rara beleza? Acho que Angélica errou
seu nome, era pra ter batizado você de “Bastet” a deusa egípcia, mulher
com cabeça de gata que oferecia proteção ao mau olhado e abençoava as grávidas,
além de comer os ratos, é claro!
- Você gostou do meu
aparador, minha deusa? Como és bela, querida! Quase não tem pelos e que olhos
enormes, nossa, realmente aqui é o seu lugar.
Caminha até a gata e
coloca a almofada sobre o aparador, ela mecanicamente puxa com a patinha a
almofada brilhante para o lugar onde está e sobe sobre a mesma permanecendo na
mesma posição. O gato Mano a uns oitenta centímetros de distância, observa a
cena enlaçado a estátua de São Jorge com os olhos semicerrados. Clenor continua
falando eufórico como se a sua sala fosse a continuação de algum palco.
- Minha casa vai
ficar dividida em classes, na sala ficam os aristogatas liderados pela Nefertiti
junto com o Mano, já nos fundos do recinto fica a turma de Mandachuva,
batatinha, chuvisco e Tom, hahahahaha! Isso me dá um bom texto infantil.
Nefertiti, a gata Egípcia
De Junior Dalberto
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