domingo, 13 de maio de 2012

Nefertiti - a gata egípcia




De Junior Dalberto

O sol do meio-dia daquela quinta-feira estava tão quente que castigava até a sombra de quem se arriscava a sair de casa àquela hora, as folhas das árvores sequer se moviam. Nenhuma brisa no ar, a cidade estava absorvida pelo calor, um calor modorrento que convidava apenas para se sentar ou deitar-se em algum lugar assombreado como único refúgio para esse calor dos meses de janeiro na cidade do sol e bebericar algo gelado.
No quintal de sua casa, sobre a sombra de uma frondosa e colossal mangueira, Clenor balançava-se preguiçosamente na sua rede amarela de ricas varandas decoradas em motivos árabes, presente do amigo jornalista e poeta Josean no seu último aniversário. Vivia cercado pelos seus dezesseis gatos dos quais conheciam todos pelos nomes, cujos atendiam curiosamente quando chamados. Sempre os batizavam com nomes de amigos. Uma esguia gata negra cria de uma possível mistura de siamês com gato de rua chamava-se Angélica, outro gordo e preguiçoso, legítimo gato angorá atendia por Jesiel, uma gata pequena siamesa comprada numa feira de animais em São Paulo com pedigree registrado e colocado em uma moldura na sala era um dos seus xodós, tinha o nome de Delma e por ai vão as nomenclaturas dos bichanos, já os vagabundos de rua eram apelidados com nomes dos amigos das noites potiguares. Havia Angélica, Lula, Jarita, Civone, Ricardo, Gleydson, Juniors (são três), Dimas, Zezo, Luana, Sonia, Delma, Castelo, etc. A maioria eram gatos apanhados em suas andanças pela cidade de Natal ou nas cidades vizinhas quando Clenor viajava com seus espetáculos teatrais.
Não conseguia resistir aos apelos dos bichanos em suas miadas vagabundas pelas vielas e esquinas. Além dos gatos potiguares, oriundos das Quintas, Vila de Ponta Negra, Rocas, Solidade II, Alecrim, Cidade da Esperança, etc. havia um gato cearense, um mossoroense, outro caicoense, um paulista e até um do Maranhão ele possuía, esse, por exemplo, trouxe de um terreiro de macumba lá na praia do Calhau. Gostou do olhar misterioso do gato que estava deitado ao lado de uma estátua de uma pomba gira negra. Astutamente, Clenor passou com a sua enorme bolsa de couro de carneiro que dentro cabia o mundo inteiro, olhou para os dois lados, abriu a bolsa, piscou para o gato e logo o danado do felino pulou dentro sem um miado. O bichano logo tornou-se potiguar e recebeu o nome de Mano, veio na viagem sem dar um gemido, só ronronava e dormia, não sabia fazer outra coisa a não ser dormir pelos cantos da casa, era o seu hobby preferido. Mano nunca conseguiu se socializar com os outros gatos, se apossou até de uma estatua de São Jorge que havia em cima de um aparador na sala do dono,  se enroscava ao redor dela e de lá só descia para comer ou resolver suas necessidades básicas. Sempre que solicitado, o gato Mano saltava para o aparador e caía certeiramente nos braços de Morfeu.
Clenor gastava uma fortuna em dinheiro com seus bichanos, com comidas, banhos, veterinários, etc. inclusive, pagava até um sobrinho para cuidar dos seus felinos sempre que precisava se ausentar da cidade. Amava demais seus animais e todos eles correspondiam à altura. Era incrível a festa que esses animais faziam quando o jovem Clenor chegava de viagem; todos pulavam em cima do seu dono, ronronavam, miavam de alegria, até a vizinhança conseguia notar quando ele estava em casa e para Clenor isso se resumia em uma nobre palavra, gratidão.
Naquele início de tarde, alguns pássaros da espécie rolinha desafiavam os gatos namorando ruidosamente sobre os arames da cerca farpada, os bichanos no chão ficavam salivando, olhando os barulhentos bípedes emplumados.
E foi com todos eles deitados sob a rede, com exceção do gato Mano que se mantinha dormindo na sala e também a delicada gata Delma que dividia a rede com seu dono, todos ronronavam e fingiam dormir, enquanto Clenor se balançava impulsionando seu pé esquerdo de encontro ao tronco da árvore em um preguiçoso vai e vem, quando subitamente ouviu a campanhia tocar, por um momento achou até que estava sonhando, mas a insistência do toque fez com que o artista levantasse mal-humorado e soltasse um tremendo palavrão.
- Isso é hora de alguém vir me visitar? E com esse calor infernal. Merda! Deixou a gata Delma se contorcendo na rede e enfiando irritada as unhas no travesseiro. Caminhou até o portão.
Diante do lindo portão de ferro de lei, artisticamente trabalhado com motivos orientais, cujo se via um Buda cercado de pássaros voando sobre a cabeça e coincidentemente gatos deitados aos pés, adquirido em uma demolição de um antigo sobrado no elegante bairro de Petrópolis da família Mariano de Medeiros, encontrava-se sua grande amiga escritora e eterna modelo Angélica que mesmo com o passar do tempo ainda mantinha o peso da época dourada e não perdia sua beleza “angelical”, marca registrada de quem um dia já desfilou pela Saint Laurent, entre outros estilistas famosos nas passarelas do mundo inteiro como Paris, Milão e Nova York, no famoso circuito Elisabeth Arden dos anos 80. Acompanhada de um rapaz franzino de cabelos bem curtos e um olhar de águia que lhe foi apresentado como Gugu do Pium, estacionava sua pequena moto Yamaha de 50 cilindradas enquanto Angélica segurava com carinho uma cesta de vime coberta por um tecido de seda vermelha e sorria graciosamente, vestindo elegantemente um velho  jeans surrado combinando com uma camiseta básica branca com os dizeres “Peace and Love” e um tênis transado, contudo no dedo anelar da mão direita usava um solitário diamante que faiscava ao sol, dizem que essa jóia foi presente de um affair em Londres com um ex-beatles. Ela nunca confirmou o romance, mas também não nega esse assunto, o qual percorreu o mundo inteiro nos tabloides de fofocas em décadas passadas.
Incomodado pelo calor, Clenor foi logo abrindo o portão gritando e gesticulando bastante com as mãos.
- Entrem logo que tá um calor de rachar, vamos, coloquem logo a moto pra dentro, pois aqui, tudo que fica do lado de fora o dono leva!
Angélica com seu andar leve feito passarinho, deu um beijinho no rosto do amigo e o cumprimentou docemente:
- Tudo bem? Já foi logo pedindo licença educadamente e entrando.
Gugu com a cara meio enfezada foi manobrando a moto em direção ao portão e entrou em seguida. Clenor foi logo passando o cadeado no portão após a entrada das visitas.
- Mulher, o que tu vem fazer aqui nesse fim de mundo numa hora dessas? Caminham juntos até uma árvore no quintal.
Clenor foi logo pegando dois tamboretes de madeira que estavam pelo caminho e posicionou-os ao lado da rede, afastou os gatos com um gesto, sentou na rede e esperou a resposta.
Angélica era sempre tão delicada e educada que ninguém jamais imaginaria sair uma grosseria daqueles lábios pintados de vermelho. Falando suavemente enquanto sentava graciosamente em um dos tamboretes, tendo a mesma iniciativa imitada por Gugu, ela falou:
- Querido amigo, estou precisando de sua ajuda, pretendo passar um bom tempo em Lhasa junto com meu amigo Gugu.

-E onde diabo é Lhasa? Indagou Clenor.
- Tibete, Darling, no Tibete! Vamos em busca da verdadeira purificação. Disse Angélica, deixando Clenor bastante surpreso.
- Mas você não foi o ano passado para Nova Delhi na Índia, Paquistão, Capádocia e Egito em busca do seu eu? Chegou até ser presa no Cairo por causa de uma bíblia inglesa de capa vermelha!
- Saiu até no fantástico, não foi? Falou Gugu com uma voz nasalada que até então permanecia em silêncio.
- Humm, o viado fala? Entreolham-se todos diante da pergunta do Clenor e dão uma gargalhada.
- Foi sim, Clenor mon coeur! Gugu cherie! Não precisavam me lembrar desse pequeno detalhe, foi apenas um mal entendido, algo sem importância, coisas de birra de uns guardas egípcios iletrados, mas, voltemos ao que interessa. Clenor Darling, estou indo com o Gugu em busca do Dalai Lama, pois queremos toda a iluminação que temos direito.
- Isso! Enfatiza Gugu.
- Queremos sair de lá pessoas bem melhores, com o rosto iluminado! Vociferou Gugu.
- Querido, você? Só se papai do céu resolver milagrar, você é cosmeticamente estranho, talvez nem um bom cirurgião plástico resolva seu problema. Disse Clenor.
- A essência da criatura, eu quero a essência da luz, isso você jamais vai entender. Falou Gugu com um certo desdém.
Interrompendo as farpas, diz Angélica:
- Isso não vem ao caso, Clenor Darling, não foi para isso que viemos aqui. Abre a bolsa e tira um leque indiano e começa a se abanar para afastar as moscas que começam a aparecer.
Gugu vira o rosto para o lado contrário onde se encontra Clenor e começa a murmurar um mantra.
- Essa louca está me jogando praga, Angélica? Olha que eu tenho Xangó de frente e Omolu de costas, não vem não que volta, tá nega? Clenor aponta seu dedo indicador para Gugu.
- Calma amigo, não é nada disso, ele está apenas murmurando um mantra da desculpa, está pedindo desculpas ao ar, as plantas, aos gatos, a você e a tudo que nos cerca por haver se excedido. É o inicio do processo da purificação, Lhasa é a coroação desse processo. Fala Angélica com propriedade sobre o assunto.
- Tudo bem, tudo bem, desculpas aceitas e peço também pelo meu excesso. Ironiza Clenor.
- Mas o que vocês querem comigo? Lhasa não está nos meus planos e a minha próxima viagem é para Sousa na Paraíba, preciso levar o espetáculo “A pequena Sereia” no próximo sábado e domingo para a criançada de lá. Fala Clenor enquanto sua gata Delma volta a circular entre suas pernas.
- É isso! Fala Angélica estendendo a cesta de vime e teatralmente retira a toalha vermelha de seda descobrindo uma linda gata de um ralo pelo dourado, macérrima, com o pescoço parecendo maior que o próprio corpo que vendo a luz do sol, estende-se sobre a cesta como uma jiboia para se ambientar, enquanto seus dois enormes olhos negros e amendoados observam tudo desinteressadamente. Devia pesar no máximo um quilo e meio e tinha aproximadamente sessenta centímetros de comprimento da cabeça ao rabo. Em seguida, olha em silêncio para o ambiente durante alguns segundos e depois volta a se deitar na cesta de vime, puxa o tecido de seda com os dentes, cobre-se e semicerra o olhar.
- Essa é a Nefertiti, a minha gata egípcia, vinda contrabandeada do Cairo, esse foi o verdadeiro motivo do incidente diplomático e não uma bíblia vermelha, como vocês pensavam. Enfatiza Angélica.
- Mas o que saiu no jornal foi uma outra história. Fala Clenor.
- No fantástico falava da bíblia! Insistiu Gugu.
- Pois então Darling, paguei cinco mil dólares para a imigração do Cairo como multa para poder trazer a Nefertiti, foi amor à primeira vista e presente de um Sheik árabe em um passeio que fizemos pelo vale dos faraós, mas isso é outra história, não tenho tempo para contar agora, vamos viajar logo mais a noitinha e por isso, resolvi lhe dar de presente a minha gata egípcia para juntar ao seu harém. Que tal? Fala Angélica.
- Amei Angélica, amei mesmo! Mas, quando você voltar vai querer ela de volta e vai ficar difícil para mim, pois fico muito apegado a todos eles. Como se entendessem o que Clenor falou, os gatos correram para se aninhar entre suas pernas.
- Veja Angélica, você tinha razão, parecem até gente, sinto que a Nefertiti está entregue em boas mãos. Fala Gugu.
- E então, quanto a isso, Clenor Darling, não se preocupe, pois depois do Tibete talvez eu deva lutar pela salvação dos ursinhos pandas. Fala teatralmente olhando para os bichanos como uma atriz diante de uma plateia ao final do espetáculo.
- Só não se incendeie! Brincadeirinha, amiga! É que os monges tem mania de atear fogo nas próprias vestes. Falou Clenor.
- Com eles dentro... Murmura Gugu.
- Se for para purificação do planeta, sou capaz de pegar fogo!!! Angélica termina assim o assunto.
- Então, vamos lá na cozinha tomar um suco de cajarana que acabei de fazer? Convidando suas visitas.
- Vamos brindar em comemoração a nova inquilina, Nefertiti a rainha dos bichanos, acho que dá até um texto infantil! Fala Clenor levantando-se da rede e gesticulando para que ambos o sigam até a sua cozinha.
O trio é seguido por todos os bichanos, eles se enroscam nas pernas dos convidados enquanto caminham, Gugu quase tropeça e pensa logo em chutar um deles, mas imediatamente desiste da investida, pois logo percebe o olhar intimidador lançado por Clenor.
- Esse rapaz deve ter desenvolvido um senso felino, parece adivinhar tudo. Pensa Gugu.
Depois de tomarem o delicioso suco de cajarana que estava gelado ao ponto e ainda de comerem uns sequilhos de goma, a dupla iluminada resolveu partir, Angélica colocou um olhar choroso sobre a gata e ela sequer devolveu, continuou dentro da cesta, alheia ao mundo lá fora. A exótica criatura tinha em seu pescoço uma coleira de prata cravejada com alguns brilhantes e seu nome gravado em ouro.
- Clenor, se eu fosse você, mandaria gravar seu telefone na coleirinha, o que você acha? Bem, querido, tenho que ir, tchauzinho pra você, bebê! Não tenho mais tempo! Virou-se Angélica deixando escapar uma furtiva lágrima.
- Desapego mulher, desapego! Repreendeu Gugu.
- Obrigada amigo, mas é muito difícil para eu me separar de Nefertiti. Mas é isso mesmo, você está coberto de razão, o momento é de desapego, desapego geral e irrestrito. Concorda Angélica.
Vão saindo em direção ao portão e despedem-se com um beijo. Clenor, agora com a cesta da gata egípcia na mão direita, fecha o portão com a esquerda enquanto assiste a moto levando as visitas e deixando a poeira do meio dia no ar.
- Que papai do céu os acompanhe! Ai, essa minha amiga é muito louca, mesmo! Pensa Clenor enquanto vai entrando em casa.
Na sala todos os gatos já se encontram como que orquestrados, deitados no único sofá sobre suas almofadas, não deixando um único espaço livre para o dono da casa sentar. Clenor caminha até o sofá e empurra gentilmente os gatos Gleydson e Jesiel de lá, coloca a cesta de vime sobre o colo e retira Nefertiti de dentro.
- Nossa, como é levinha! Diz Clenor, admirando a beleza da gata que se deixa levar e ronrona em seu colo.
- Deixa ver o que tem mais aqui dentro. Meu Deus, que almofada mais chique! Toda em seda prateada, com o nome bordado em dourado e um prato de comida em prata, essa Nefertiti é digna de uma rainha. Mas aqui, querida, você vai ter que conviver por igual, entendeu minha linda? Fala seu dono admirando toda a sua excentricidade.
- Nossa! Como é bela minha gata egípcia! Acaricia o comprido pescoço da gata que permanece imóvel, apenas acompanha o carinho do dono com o movimento imperceptível das pupilas.
De um salto, a gata pula do seu colo e caminha elegantemente feito uma bailarina até diante do aparador, que em questão de segundos salta e cai ereta sobre as quatros patas em cima de uma pedra de mármore branca, permanecendo nessa pose diante de Clenor.
- Ó Nefertiti, com toda sua pompa e realeza, o que você tem, rara beleza? Acho que Angélica errou seu nome, era pra ter batizado você de “Bastet” a deusa egípcia, mulher com cabeça de gata que oferecia proteção ao mau olhado e abençoava as grávidas, além de comer os ratos, é claro!
- Você gostou do meu aparador, minha deusa? Como és bela, querida! Quase não tem pelos e que olhos enormes, nossa, realmente aqui é o seu lugar.
Caminha até a gata e coloca a almofada sobre o aparador, ela mecanicamente puxa com a patinha a almofada brilhante para o lugar onde está e sobe sobre a mesma permanecendo na mesma posição. O gato Mano a uns oitenta centímetros de distância, observa a cena enlaçado a estátua de São Jorge com os olhos semicerrados. Clenor continua falando eufórico como se a sua sala fosse a continuação de algum palco.
- Minha casa vai ficar dividida em classes, na sala ficam os aristogatas liderados pela Nefertiti junto com o Mano, já nos fundos do recinto fica a turma de Mandachuva, batatinha, chuvisco e Tom, hahahahaha! Isso me dá um bom texto infantil.

A decoração da sala é motivada pelos anos oitenta, há um sofá de três lugares vermelho coberto por uma manta com fuxicos azuis e vermelhos, um tapete vermelho e dourado com desenhos bordados de “arabescos” árabes tomando conta da sala, dezenas de almofadas de cetim coloridas ficam espalhadas sobre o mesmo para que as visitas se sintam mais a vontade, acredita o artista. Na parede da direita, acima de um descascado e sempre úmido pote de barro de onde sobressai um verdejante pé de comigo-ninguém-pode, ainda existe uma foto emoldurada do time do America de 2009, diante do sofá há um móvel conhecido por rack onde se encontra uma TV de plasma de 40 polegadas, um aparelho portátil de som, além de centenas de DVDs de CDs musicais organizados por ordem alfabética, vários portas-incenso, alguns com varinhas sempre acesas perfumando o lugar.
O rapaz termina de falar e segue em direção ao corredor levando nas mãos o prato de prata da gata egípcia para colocar comida e a cesta de vime. Nefertiti continua ereta sobre a almofada com o olhar enviesado para o gato Mano, o que separa o olhar da gata é apenas um vaso solitário com uma rosa amarela colhida no jardim da frente da casa de Clenor. O vaso faz parte da decoração da sala, assim como uma estátua do São Jorge que ficam sobre um aparador, que foi confeccionado artesanalmente com uma pedra de mármore de aproximadamente um metro por quinze centímetros colocados sobre duas colunas de tijolos brancos aparentes e pintados com cal branca, criação do próprio dono da casa.
Na parede branca acima do aparador tem um quadro em sanduiche de vidro com quase um metro de altura de uma reprodução tradicional de Iemanjá saindo das águas do mar com um manto azul claro, decorado com dezenas de estrelas e com uma coroa na cabeça. Depois da paixão por teatro e pelos seus gatos, são as roseiras e os girassóis que o rapaz mais admira, por essa razão, cultiva um modesto jardim de três metros quadrados com vários tipos de roseiras, vermelhas, amarelas, rosas, mescladas, príncipes negros, brancas, paulistas, rosas meninas, etc. que perfumam e decoram sua casa durante todo o ano, lá é um lugar terminantemente proibido para os bichanos e eles respeitam muito bem essa regra, nunca são vistos entre as roseiras, os felinos tem uma verdadeira aversão ao seu jardim, tudo tem a ver com a chinelada que o gato Gleydson levou nos quadris além do grito do dono, quando o bichano resolveu fazer coco ao lado de um canteiro de girassóis cuidadosamente cultivados debaixo do parapeito da janela, foi um deus-nos-acuda, todos os gatos fugiram desesperadamente pra cima da enorme mangueira que ocupa boa parte do seu quintal, a partir desse dia nunca mais Clenor viu algum gato no seu jardim. Inexplicavelmente, o gato punido deve ter repassado o recado para os outros colegas.
No parapeito da janela ficam dois vasinhos de cravos, um de cravos vermelhos e outros de cravos brancos. A casa fica num bairro bucólico da zona norte de Natal conhecido por Solidade I. Tem como vizinho do lado direito de sua casa um terreno baldio que a criançada usa como campo de futebol, em frente ao mesmo vem a tão movimentada avenida litorânea que separa o bairro onde mora dos mangues do Potengy, rio que banha a cidade potiguar.
A vizinha da esquerda é a implicante Dona Ivonete, uma obesa senhora de idade, grisalha, viúva e pensionista do INSS que passa o dia inteiro importunando a vizinhança vendendo refratários da “Tuperware” e aproveitando-se da oportunidade para se manter informada da vida dos vizinhos e do bairro, sendo Clenor o alvo predileto de suas fofocas. A sua implicância em relação ao vizinho é explicada pelo fato que ela nunca conseguiu colocar os pés dentro da casa dele.
Clenor que vive da arte do teatro há mais de trinta anos, já conviveu com todos os tipos de personagens, egos inflados, futricas de atores, iluminadores e toda a classe artística que ele alcunha de “serpentário de Ionesco”, jamais vai dar margem para velha da Dona Ivonete se criar, diz ele pra si mesmo.
O rapaz inclusive já mandou instalar envolta de toda a sua residência uma cerca de arame farpado semelhante as usadas em penitenciárias, para acabar de vez com as queixas e ameaças da vizinha, que frequentemente reclama dos gatos quando pulam no seu quintal para fazer coco. Apenas um galho da mangueira ultrapassa a cerca farpada sobre o muro em direção à casa da megera, mas Clenor acredita que nesse fim de semana vai dar uma podada na árvore para evitar maiores problemas.
A residência do artista tem três quartos, um está sempre fechado e é decorado todo em azul, cortininhas e cama de casal com dossel também azuis, além de lençóis e fronhas azuladas predominam o ambiente, na parede da direita do quarto que também é toda pintada de azul, tem um quadro antigo emoldurado com a paisagem da famosa praia de Genipabu com o bar 21 ao fundo das dunas douradas e três rapazes sentados vestidos apenas de minúsculas e semelhantes sungas pretas sobre uma jangada olhando propositalmente para a câmera e um deles o mais moreno e sorridente segura um graveto e o aponta para a areia da praia onde está escrito: “Amigos para sempre Amaury, Clenor e Gleydson - 1995”. O fotógrafo conseguiu pegar a luminosidade do sol dourando as dunas. No quarto, ainda há um enorme guarda-roupa que domina toda uma parede à esquerda da cama.
Clenor que nesse momento encontra-se no terceiro quarto, onde existe uma placa de madeira na porta com os dizeres pintados em letras garrafais “Residencial gatos felizes”, é cercado por dezenas de almofadas coloridas espalhadas por todo o chão, lá seus bichanos dormem quando querem, além de um espaço cheio de pratos fundos próprios para alimentação dos felinos, há também uma estante com vários refratários de plásticos de tamanhos distintos e adesivados com “comida para gatos” hermeticamente fechados.
Uma janela é mantida aberta para o quintal protegida por uma grade de ferro com hastes separadas em pequenos espaços onde apenas os gatos conseguem atravessar quando vão brincar ou fazer o que bem entenderem no quintal. Muitos deles passam os dias nos galhos baixos das mangueira e só entram no quarto residencial para comer ou dormir.
Existe ainda um segundo quarto o qual Clenor usa para guardar o seu material de trabalho como cenários, fantasias, acessórios, etc. lá tem um pequeno atelier com máquinas de costuras. Recentemente colocou um computador para manter-se antenado com o mundo virtual, já tem até um perfil no Orkut e também no facebook, vive postando fotos dos gatos e participa de várias comunidades que se referem aos felinos.
O barulho de algo como louça caindo e quebrando assustou Clenor que rapidamente largou um prato de prata com comida no chão do quarto e dirigiu-se rapidamente para a sala, onde supostamente teria vindo o barulho. Lá chegando, constatou que no chão encontrava-se a estátua de São Jorge partida em vários pedaços e o gato Mano choramingando ao lado da cabeça do cavalo que estava no pé do sofá. Alguns gatos acompanharam o dono até a sala, a gata Delma passava entre as pernas de Clenor puxava a perna da bermuda com os dentes e dava longos miados para cima do aparador onde estava imóvel, Nefertiti, a gata egípcia, parecendo alheia a tudo. Clenor Olhou para o chão e soltou um palavrão:
- Merda, era só o que me faltava! Foi você Mano quem fez essa sujeira? Eu sabia que um dia isso iria terminar assim. Meu São Jorge, presente da Fafá de Belém a minha diva paraense! Falou para os gatos que o cercavam.
Uma vez em um show nos anos noventa lá no restaurante Recanto do Garcia em Pium, Clenor invadiu o camarim da musa todo travestido da própria, que por sinal adorou a homenagem. Ela ficou muito agradecida e perguntou o que poderia fazer por ele, lembrava desse episódio enquanto juntava os pedaços da estátua. Ele vasculhou o camarim da estrela com o olhar e logo mirou a estatueta de São Jorge, não teve dúvidas, era isso o que ele queria como recordação daquela inusitada noite e sem hesitar, perguntei se ela poderia me dar.
E não é que a Fafá de Belém deu a imagem do seu santo protetor e nem pestanejou, todo o ritual de doação foi acompanhado pela tão tradicional gargalhada da cantora. Foi um luxo aquela noite! Sempre enfatiza Clenor quando conta essa historia.
- Vem aqui Mano, quero ver se tu está machucado! Pega o gato e vê que o focinho do mesmo está arranhado, em seguida olha para Nefertiti e diz:
- Será? Não, não acredito! Uma gata tão linda e delicada não iria fazer uma coisa dessa.
A gata olhou para o novo dono e mudou a posição, baixou o focinho sobre as duas patinhas dianteiras e lançou um olhar que enterneceu o artista que soltou um:
- Que coisa mais linda, meu Deus! Esse seu olhar Nefertiti me faz lembrar alguém, mas quem será? Colocou o gato Mano no colo e dirigiu-se ao banheiro.
- Vamos xaninho que painho vai colocar um mertiolate nesse ferimento. Deve ter se ferido com os cacos da estátua, depois eu junto tudo e tento remendar com cola, aí você já terá um novo São Jorge, ok? Quando olhou de relance para Nefertiti ela já havia retornado a sua posição habitual, sentada sobre as patas traseiras e com as patas dianteiras erguidas retas, feito seu pescoço, parecendo uma estátua egípcia.
Clenor achou que havia visto pêlos negros nas unhas da gata, mas ela como que percebendo o olhar do dono, recolheu as unhas de imediato escondendo-as para dentro dos dedos como fazem os felinos.
- Bobagem, ela não faria um coisa assim! Foi andando para o banheiro levando o gato preto Mano, sendo seguido pelos outros.
Após colocar mertiolate soltou o animal que se vendo livre correu para o quarto onde ficavam os outros felinos e deitou-se ao lado do gato velho Jesiel.
Misteriosamente os gatos se reuniram e foram para junto do seu dono, todos ronronavam e miavam baixinho. Clenor achou engraçado a ação de cumplicidade entre eles, mas, de repente o telefone celular toca no rack da sala, desesperadamente Clenor corre pra atender:
- Sim? (Ele nunca falava alô)
Do outro lado da linha uma voz feminina falou:
- Hare Hare!
Clenor Respondeu reconhecendo sua amiga Angélica:
- Hare Krisnha Angélica, está no aeroporto?
- Sim! Mas tenho algo para contar Clenor, se não, não viajo de consciência limpa. Responde Angélica ao amigo.
- É o quê, amiga? Pergunta Clenor.
- Bem amigo, esqueci de lhe falar que a gata Nefertiti tem três defeitos terríveis.
- É? Alguma doença grave? Estranhou Clenor.
- Nada disso amigo, ela é profundamente excêntrica, instável e egoísta.
- Bem, nada que nós também não tenhamos um pouco, não é Angélica? Ponderou Clenor.
- Não querido, é bem mais sério, você se lembra do meu gato de raça angorá chamado “Sorriso de Alice”? Ela tanto implicou com ele que o bichano sumiu, agora imagine como pode um gato sumir de uma cobertura de um edifício de trinta e seis andares? Gugu diz que ele não aguentou a pressão de Nefertiti e suicidou-se pulando do prédio. Eu não sei, procurei por todos os vizinhos, espalhei cartazes nos postes oferecendo recompensas e até agora, nada! E o mais estranho Clenor é que a gata vivia sentada em sua almofada no canto da minha sala e não saía de lá para nada, mas, depois do sumiço do Sorriso de Alice ela começou a passear pela casa inteira como se fosse a única dona. Pronto Clenor....Ufa! Já me sinto aliviada, contei tudo o que você precisava saber sobre Nefertiti, agora sim, posso viajar em paz. Tchau Darling, agora tenho que embarcar, vou pegar o avião, já está na chamada final, Hare, querido!
- Krisna Hare, louca! Imagine um gato pular do alto de um prédio por causa de outro, ela deve ter saído e esquecido a porta de serviço aberta, minha amiga sempre foi muito desligada, tomara que volte mais iluminada de Lhasa.
Clenor volta para sala com um tubo de cola e já vai recolhendo os caco do São Jorge para consertar, percebe que a cabeça do santo não está no pé do sofá onde ele tem certeza que a viu antes de levar o gato preto ao banheiro. Foi esquadrinhando toda a sala em busca da cabeça do São Jorge, achou todas as outras peças e foi colando uma a uma, todavia a estátua continuou incompleta.
Clenor olhou para Nefertiti e falou:
- Mil perdões minha linda, mas estou desconfiado de algo e quando isso acontece eu enlouqueço! Foi até a gata que percebendo as intenções de Clenor, foi lentamente abaixando a cabeça, colocando o focinho sobre suas patas dianteiras e fazendo um olhar desolado.
- Meu Deus do céu, eu só queria me lembrar com quem você parece quando faz essa cara! Afasta, afasta, me deixa ver embaixo dessa almofada. A gata tentou golpear o braço de seu dono com suas unhas, mas Clenor não se fez de rogado.
- Não acredito num negócio desse, vai tentar me unhar, vadia? Tente pra ver o que acontece contigo, tenta me arranhar pra ver! Meu Deus, suas unhas estão cheias de pêlos negros e o que é isso? Embaixo da almofada estava a cabeça da estátua do São Jorge.
- Gente, se eu contar essa estória lá no Bardallos ninguém vai acreditar! Que sonsa, heim, Nefertiti! Venha aqui! Pegou a gata pelo meio e levou até onde estavam os outros, colocou ela no chão e falou:
- Aqui todos são iguais, apesar de você se julgar mais igual querida, aqui quem manda sou eu! Se você voltar a aprontar com a gateada quem vai dançar é você, viu neguinha! Arranco essa sua coleira, lógico, e entrego você para o primeiro mendigo que passar na rua, tá entendendo? A gata olhou ao redor, mudou o olhar para Clenor e depois saiu caminhando garbosamente em direção à sala.
Diante do aparador deu um suave miado, seguido de um salto caindo sobre a almofada prateada e retornou à posição de sempre. Clenor olhou para ela e completou:
- Estamos conversados? Me ouviu, pernóstica? Mesmo assim, como és bela minha gata egípcia! Baixa o tom e fala admirando.
O dia seguinte amanheceu cinzento com cara de que logo iria chover. Clenor começou logo cedo a organizar seus figurinos e cenários dentro do carro, iria viajar para Souza na Paraíba, alguns gatos davam longos miados no quintal, era sempre assim quando o rapaz precisava viajar.
Convidou mais uma vez para cuidar de sua gatilha o seu sobrinho Amaury, de vinte e dois anos, eterno desempregado e que mais uma vez não tinha passado no último vestibular. Tinha sempre como bordão a desculpa que não tinha chances de competir no vestibular com os alunos da rede particular. Enrolava sempre sua mãe com esse papo de malandro para não ter que trabalhar, e ela acreditava.
Clenor achava um espanto essa história, mas como precisava de alguém para olhar seus gatos quando viajava, fazia vista grossa à malandragem do sobrinho. E ele como sempre, chegou logo cedo com a mochila nas costas, mastigando algo e folheando umas apostilas de química para pegar as chaves da casa e as recomendações de sempre.
O rapaz mal notou a nova moradora. Pouco se importava com mais um bichano, não gostava nem desgostava de gatos, achava estranho o tio ter tantos felinos em casa. O que ele gostava era da grana, recebia para cuidar dos bichos enquanto Clenor se ausentava. Seu trabalho consistia em alimentar os bichos e fazer as limpezas necessárias, Amaury as executava num piscar de olhos, na sequência, se via livre para passar o dia inteiro jogando games no computador e nas redes sociais. Quando anoitecia, fechava as portas e deixava os gatos sozinhos. Não havia perigo, a casa era bem cercada de arames farpados.
Clenor despediu-se dos gatos derramando-se em atenção especial a gata Nefertiti, depois de vários carinhos e salamaleques acompanhados da frase:
- Meu Deus, como ela é bela! Cada vez que ele falava a gata dava uma piscadinha nervosa para o rapaz que vibrava.
Enquanto isso no final do corredor, todos os outros gatos o observavam ronronando nervosos, alguns chegaram até a se unharem de tão enciumados que estavam pela atenção exclusiva do seu dono pela gata egípcia. Finalmente o rapaz entrou no carro e saiu, após fechar o portão caiu o maior pé d´água, trovões estrondavam no ar, os gatos em silêncio recolheram-se em suas almofadas. Apenas o preto gato Mano deixou-se ficar enroscado entre as grades de ferro da janela, observando a chuva que caía e inundava o quintal.
Dois dias depois, uma segunda-feira com um início de um pôr do sol dourado sobre a cidade das dunas de Genipabu o artista Clenor chegou a casa, e como de costume, desceu do carro, se dirigiu ao portão para abri-lo, mas a princípio, não o colocou na garagem. Uma coruja rasga mortalha passou sobre sua cabeça e deu um longo piado.
- Sai pra lá demônia! Gritou Clenor persignando-se.
Assustou-se novamente com a voz estridente de Dona Ivonete à sua esquerda:
- O senhor já chegou, seu Clenor? Colocando a velha cara enrugada sobre o próprio portão para a rua.
- Cheguei sim, Dona Ivonete, algum problema? Arrependeu-se em seguida de ter feito essa pergunta, porque a velha fofoqueira logo abriu o portão e falou:
- Ontem à noite deu até polícia aqui, o senhor sabia?
- Aqui na Zona Norte sempre dá polícia Dona Ivonete, moro aqui faz dez anos e todos os dias a Zona Norte é citada nas colunas policiais, dá ibope querida!
- Mas foi na sua casa, seu Clenor, que a polícia veio ontem! Falou com um prazer articulado a futriqueira da vizinha.
- Na minha casa? Parou de abrir o portão na hora e voltou-se para a vizinha e era isso o que ela esperava, então, foi caminhando em direção ao portão esperando ser convidada para entrar, percebendo a manobra Clenor colocou-se na frente do mesmo e passou novamente a chave, fechando-o em seguida.
- Como assim Dona Ivonete, deu polícia na minha casa? Voltando-se frustrada para frente de sua casa e falando bem alto chamando a atenção de quem estivesse passando.
- Foi sim, não sei quem deu queixa, eu não fui, pode ter certeza, mal cuido de mim, cada um vive a vida como quer, esse é o meu lema e o senhor sabe bem disso!
- Tudo bem Dona Ivonete, eu sei que a senhora é uma santa, mas o que houve pra polícia bater aqui na minha casa?
- Bem seu Clenor, a sua gateada fez um barulho do cão ontem à noite, assim que aquele seu sobrinho que não consegue passar no vestibular saiu, o senhor já pensou em arrumar um trabalho pra ele? Um rapaz tão novo, né? Já faz parte das estatísticas dos sem-teto ou sem nada, não é?
- Dona Ivonete, desenrola logo, deixe que dos meus cuido eu! O que a polícia queria mesmo?
- Bem, alguém deu queixa por causa do barulho dos gatos que desde após o almoço, quando seu sobrinho saiu e ele sempre sai logo após o almoço, o senhor sabia? Pois, pelo o que eu sei seu Clenor ele deveria passar a tarde inteira, não é?
- É, Dona Ivonete! Responde um impaciente Clenor.
- Eu não quero saber de detalhes, quero apenas saber o que houve pra polícia ter vindo aqui na minha casa?
- A queixa homem, a queixa...mas eles não fizeram nada, como sempre, né? Enrolam pro lado, pro outro e vão simbora, perguntaram se morava alguém na casa, eu falei que o senhor estava viajando, mas que cuidava muito bem dos gatinhos e que o senhor tinha um sobrinho que não quer saber de nada, mas que lhe ajudava por dinheiro. Ofereci até o meu quintal para eles olharem dentro da sua casa, eles entraram, subiram na minha escada e olharam pro seu quintal! Mas só viram os gatos, disseram que depois voltariam com um chaveiro para abrir o portão, mas até agora nada, já pensou se fosse um caso de ladrão ou de vida ou morte? Já estaria saindo um caixão por essas horas, não acha? Meu Deus, eu fico só me perguntando o porquê que os pobrezinhos dos bichanos miavam tanto, seu Clenor! O senhor sabe?
- Obrigado Dona Ivonete pela ajuda, estou muito cansado da viagem e qualquer coisa se precisar lhe chamo, tá bem? Muito obrigado.
Dessa vez, Clenor não abriu o portão da casa para guardar seu carro, como era de costume, não queria dar o cabimento daquela velha poder entrar em seu lar. Naquele instante, seu carro foi deixado em segundo plano e só após entender o que realmente teria ocorrido em sua casa, colocaria seu carro na garagem.
Ao dispensar sua vizinha, abriu o portão menor e entrou pelo jardim, pelo menos numa primeira impressão, tudo estava bem. Olhou as roseiras, passou a chave na porta de entrada e foi brutalmente surpreendido pelo o que presenciou. A sua sala estava uma tremenda bagunça, seus quadros da Iemanjá e do time do América estavam lado a lado sobre milhares de cacos de vidros, a estátua do São Jorge jazia aos pés do aparador espatifada em pedaços, e dessa vez não havia cola super-bonder que desse jeito, seria um quebra cabeças de dez mil peças para montar. Penas de ganso ainda pairavam no ar, parecia um gigantesco galinheiro sem galinhas, apenas penas.
Posando sobre o que restou da sua linda almofada prateada que agora estava reduzida a um pedaço de tecido esfarrapado sobre o mármore, estava ela, a imponente Nefertiti, dessa vez, com vários arranhões visíveis no pescoço e bufando enlouquecida para cima, fazendo com que centenas de pêlos girassem no ar sobre sua cabeça.
- Meu Deus! Passou um furacão por aqui! Exclamou o artista.
Seus CDs e DVDs estavam espalhados por todos os lados, uma cagada de gato ainda escorria úmida sobre a tela da TV, enaltecendo ainda mais o clima de imundícia no local, nem o pé de comigo-ninguém-pode escapou ao vandalismo, haviam folhas e talos pra todo canto e o odor imperava no ambiente.
Colocou no sofá a bolsa de couro que sempre carregava e caminhou com as mãos na cabeça até a cozinha pelo corredor, foi uma odisseia escabrosa enfrentar o trajeto, pois o caminho estava todo pavimentado de fezes felinas, pelos e diminutas bolinhas de isopor, que antes enchiam as almofadas.
Chegando a cozinha, precisou imediatamente tomar um copo d’água para tentar entender o que havia acontecido. Tentou respirar fundo, mas a tentativa foi logo interrompida pela nuvem de pêlos de gato que ainda pairavam no ar feito sementes de dentes-de-leão lançadas ao vento. Mais uma vez, tentou respirar fundo tentando digerir melhor àquela inóspita recepção e teve um ataque de espirros.
- O que esses gatos fizeram com a minha casa, meu Deus do céu? Desabafa atormentado.
Para agravar o desastroso cenário, Clenor ainda deixa cair um copo no chão quando abre a geladeira, criando um aglutinado de merda, penas, pelos e cacos de vidro, tornando o episódio que já era angustiante numa situação bizarra e insuportável.
Dentro da sua travessa colorex predileta, ainda estava uma colorida salada de cenouras fatiadas com beterrabas e alface que havia esquecido na mesa antes de viajar, só que agora, enriquecida com patê de coco de gato.
- Como é que pode uma coisa dessa? Vou botar agora o autor dessa diabrura na rua, ah se vou! Enfurecido, tirou a travessa da geladeira e escorou a porta com uma cadeira para sair o mau cheiro.
- Vou ter que lavar tudo! Isso sim, é que é estar literalmente na merda! Abriu a lixeira e jogou tudo fora, a salada, a merda e a travessa de colorex.
- Que mais me falta agora? Estranho! Onde estão todos os meus bichanos que sempre faziam festa quando eu chegava? Dirigiu-se apressadamente para onde normalmente ficavam seus gatos.
Outra confusão semelhante a da sala o aguardava, várias almofadas foram transformadas em retalhos esfarrapados, porém, nada dos gatos. Clenor olhou automaticamente pela janela gradeada, quando viu todos os seus gatos em cima da mangueira, imediatamente saiu do caos de seu quarto e logo seguiu em direção à árvore onde estavam seus felídeos, que inexplicavelmente andavam nervosamente sobre os galhos, pareciam bastante amedrontados e miavam desordenadamente na mesma sinfonia.
Num dialeto indecifrável para os homens, mas inteligível para os gatos, Clenor estabelece uma esquisita comunicação com seus bichanos, como uma espécie de hipnose, fazendo-os descer um de cada vez, como um verdadeiro encantador de gatos.
Calmamente acompanha a descida um por um dos gatos, a primeira que desce é a gata Delma que estranhamente repudia a acolhida de seu dono e mantém distância do rapaz enquanto mia irritantemente, em seguida, desce o gato Gleydson que ao se aproximar de Clenor, golpeia sorrateiramente seu braço com suas garras afiadas e logo volta correndo para o alto da árvore soltando um estridente miado, como se quisesse repreendê-lo de algo.
- Ei seu fuleira! Por que isso agora? Quando virou para a direção da cozinha ainda viu os grandes olhos amendoados de Nefertiti na porta.
- Já entendi tudo, ciumeira bruta e quem se lasca sou eu! Tenho que resolver isso agora, vou logo telefonar para Amaury vir me ajudar nessa limpeza. Mas tenho que fazer esses gatos se unirem, se isso não acontecer, nem sei o que fazer!
- Agora, jogar fora minha gata egípcia, nunca! Ela é muito linda! Vou tratar dela primeiro e a turma do beco do mandachuva cuido depois. Fala Clenor convicto da solução.
Duas horas depois com a ajuda do seu fiel escudeiro Amaury na faxina, sua casa já havia retornado a aparência de um lar. A essa altura, alguns gatos já tinham descido da árvore, ficaram lá apenas os gatos Jesiel e o Gleydson, que estavam disputando miados desfilando enfurecidos nos galhos da mangueira, enquanto no céu surgia a lua nova que lembrava o sorriso do gato de Alice, por coincidência ou pura ironia do destino.
O artista foi até o aparador com uma gaze e um vidro de mertiolate, pegou a gata egípcia no colo e foi até o sofá, ela deixava-se levar ronronando. Clenor sentou-se e decidiu tirar a coleira de prata da gata para ver se havia mais algum ferimento, quando a gata entendeu o movimento do rapaz em tentar abrir o fecho, afiou as unhas e deu uma unhada segura na mão direita de Clenor, que num súbito reflexo jogou-a brutalmente no chão e gritou:
- Está louca? A gata lambeu-se e seguiu altiva até o pé do aparador, deu um salto e voltou para cima do móvel.
- Ora, vá a merda sua louca! Vociferou o dono da gata.
- Ah, não estou mais aguentando, estou morto de cansado, acho que vou é dormir e vou agora mesmo! Entrou para o seu quarto, ligou o aparelho de ar-condicionado, fechou a porta e dormiu de tão exausto que estava. Na porta do seu quarto, Nefertiti afiava as garras, deixando ranhuras na madeira branca, ao mesmo tempo, os gatos retornavam para o alto da mangueira, onde passaram a noite. Na manhã seguinte, Clenor acordou com o barulho de confusão de miados histéricos.
- Merda! Exclamou o rapaz.
- Será que cagaram tudo de novo? Abriu a porta e viu que o gato Mano estava com o focinho cheio de sangue, cercado pelos gatos Jesiel, Gleydson, Lula e Ricardo, que numa atitude protetora com as unhas afiadas demonstravam estar prontos para um ataque.
De cima do aparador, Nefertiti dava terríveis miados e encontrava-se, também, com as garras afiadas. Clenor pegou o gato preto e viu que faltava um olho no animal.
- Meu Deus, vou já levar você ao veterinário. Disse Clenor colocando o gato no chão, que na sequência, corre rapidamente ao banheiro para lavar o rosto e trocar de roupa.
Na porta do quarto, surgiram ainda mais bichanos que se dispuseram todos ao lado do gato Mano, miados ameaçadores eram respondidos quase em eco por Nefertiti que permanecia inerte em cima do trapo que restava da sua almofada real.
Clenor saiu rapidinho do quarto já de roupa trocada, pegou o gato machucado e seguiu em direção à garagem. Observou que a mancha de sangue seguia do aparador pelo chão até a porta do seu quarto.
- Agora tenho certeza que foi você Nefertiti, quando eu voltar do médico com Mano acerto as contas contigo. Conclui inconformado.
A gata baixou-se sobre suas patas dianteiras e jogou aquele olhar para o rapaz.
- Já sei prejura com o que tu se parece! É com o gato de botas do filme do Schrek, é essa cara mesmo que ele faz quando sacaneia alguém, desgraçada!
- Só pode ter vindo do Egito aquele famoso ditado “Dar a unhada e esconde a unha”. Tão linda meu Deus, mas tão ordinária, me deixa voltar do veterinário que fazemos nosso acerto de contas, vamos aparar nossos bigodes Nefertiti. Disse Clenor, ainda colocando o gato ferido no interior do seu carro, fechou o portão e saiu desesperado em busca de socorro para o gato Mano.
Três horas depois e mais pobre em oitocentos reais, valor esse pago pela consulta e tratamento do gato preto, que já se encontrava dormindo no piso do carro ainda sob o feito da anestesia e com um tampão no local onde outrora havia um olho.
Clenor chega irritadíssimo em casa. Diante do seu portão a mensageira das más noticias Dona Ivonete já se encontrava com uma vassoura na mão a sua espera, mal o rapaz desceu do carro com o gato no colo, a velha logo correu ao seu encontro e falou:
- Tem um gato ou uma gata bem estranha no galho da mangueira que dá pra minha casa se esgoelando que ninguém aguenta, vê se dá um jeito seu Clenor, porque tá me deixando louca! Retornando para casa sem esperar resposta.
- Ainda mais essa! Pensou Clenor sem responder á vizinha.
Entrou apressadamente em casa e colocou o gato preto no sofá da sala, olhou para o aparador e percebeu que estava tudo vazio, inclusive o vasinho solitário estava no chão aos pedaços, não estava Nefertiti, nem muito menos o resto da almofada. De onde ele estava, dava para ouvir a miadeira infernal procedente do quintal, o rapaz voltou para a rua e colocou o carro na garagem, depois se dirigiu até o quintal onde se deparou com a gata Nefertiti sobre o galho da mangueira que dava para a casa de Dona Ivonete, prendendo o tecido na pata do que havia sido sua almofada, enquanto isso, todos os gatos miavam ameaçadores para ela ao pé da árvore. Alguns gatos estavam com os pêlos todos crispados e afiavam suas garras na mangueira.
Quando a gata viu que Clenor estava vindo em sua direção, pegou os trapos da almofada com os dentes e saltou do galho para o quintal da vizinha. Clenor ouviu o grito assustado de Dona Ivonete e correu de volta para o portão da frente de sua residência para ir na casa da vizinha. Os gatos, como que por encanto, pararam de imediato com os miados.
Quando Clenor chegou ao portão da vizinha, Dona Ivonete já se encontrava lá apontando para o lado do campo baldio e disse:
- Ela correu pra lá com um molambo na boca, ela tem um olhar do demônio seu Clenor, se livra dela pelo amor de Deus! Pela primeira vez Clenor achou que a velha louca tinha razão, pensou o rapaz enquanto corria até o campo de futebol ao lado.
Quando chegou ao início do terreno vazio, que servia como campo de futebol para os jovens da comunidade, viu de uma certa distância, a gata egípcia tentando driblar os carros e tentado atravessar a avenida litorânea em sentido ao mangue.
- Nefertiti! Ele gritou.
Ela atravessou a pista, virou-se para o rapaz e soltou o tecido da almofada que o vento levou em direção a um arbusto próximo. Clenor conseguiu chegar até a avenida, a gata deu um longo miado e se embrenhou mangue adentro. O rapaz foi até o arbusto e apanhou o resto do tecido da almofada, olhou para o mangue e voltou para casa. Dona Ivonete do lado de dentro do portão de sua casa, ainda arrisca a frase:
- Ela se foi? Clenor não responde.
- Melhor assim seu Clenor, essa gata era do mau! Continua Dona Ivonete.
Clenor chega ao portão, olha pra vizinha e fala:
- Dona Ivonete, vá arrumar uma lavagem de roupa e me deixe em paz! Grita Clenor impaciente.
O telefone toca na sala. O rapaz atende e do outro lado da linha ouve uma voz com eco.
- Hare, Hare, amigo!
- Hare Krishna, amiga! Responde Clenor.
- E então, como está a nossa gata Nefertiti? Pergunta sua amiga Angélica.
- Darling, a última notícia que tenho da terceira praga egípcia que você me presenteou, é que ela foi vista, da ultima vez, lá no cais do porto do canto do mangue, negociando uma coleira de brilhantes por uma passagem de volta para o Cairo e... Hare Krishna pra você, Angélica! Enfático e impaciente, Clenor já conformado, desliga o telefone.
No sofá o gato Mano dorme a sono solto.
Fim
Obra dedicada aos artistas e amigos Clenor Junior, Angelica Timbó, Gugu de Pium, Landson Morais e Robson Paiva.
Revisor: Robson Paiva