sexta-feira, 13 de abril de 2012


A Barca de Caronte – Capítulo 2


Capitulo 02
No capítulo anterior três desconhecidos se encontram em um lugar o qual não conseguem entender onde fica nem o que é. Não sabem se estão vivos, mortos ou dormindo. Sem nenhum controle sobre a situação nenhum deles consegue identificar se ela é real ou imaginária”.
JÚLIO: Talvez tenhas razão. Quem sabe o mestre dos magos ou aquele unicórnio afeminado? Olha aqui garoto, velho é o tempo que é dono da idade. Esse desenho é mais velho do que você. Vamos cair na real. Isso aqui é o portal do inferno e, realmente, só falta aparecer o dragão do mal.
RIANA: Concordo com quase tudo, mas acho que logo acordo desse pesadelo. (Falando para si) Qual a última lembrança de vocês?
Leonardo resolve caminhar de volta até onde estão os dois e, fazendo pose como se estivesse em um palco, vai andando e tentando livrar-se de algumas gotas quentes que caem do alto. Tosse e fala:
LEONARDO: Eu estava testando o meu novo carro, se é que se pode conceituar um poscher de carro! Eu corria logo ali, na Avenida Raposo Tavares, em direção à casa dos meus pais que fica em Cotia. Domingão, almoço em família é de lei, avenida larga, poucos carros... Sabe como é! Um maravilhoso, desejado e disputadíssimo Poscher verde-musgo metalizado, ainda sem placas, painel todo de madeira, um luxo completo - Rick Martin tem um igualzinho - aquele cheirinho de novo que é melhor do que sexo, banco de couro, perfeito até a fumaça.

Depois que sentei no banco e girei a chave entrei em outro mundo... Pisei fundo e quanto mais eu acelerava mais dava vontade de correr. A avenida estava perfeita e inteirinha só para mim. Um sol suave iluminava o percurso, o vento acariciava meu rosto, as árvores curvavam-se quando eu passava. Silêncio absoluto. O motor parecia não existir, não se ouvia nenhum barulho. Ah, a primeira coisa que farei quando acordar desse pesadelo será arrombar aqueles canos de escape. De que adianta ser dono de um poscher e não ser notado? É como ir para Las Vegas de classe econômica (Não espera respostas). Bom, continuando: pisei fundo, não havia nenhum outro carro na avenida, sorte grande, como minhas cartas de Tarô sempre dizem.
Que viagem, meu! Eu me sentia dono do mundo, muita leveza, parecia que pilotava uma super lancha em alto mar, a sensação é idêntica. Acho que é o mesmo prazer de pilotar um jatinho, não é cara? (Júlio sequer olha para ele) Tentei encostar os ponteiros, mas claro, sempre com muita responsabilidade. Ficava ligado na pista, um olho nos ponteiros e o outro na avenida. De repente, passei de Cotia... My good! Demais! Quando olhei pelo retrovisor vi que o posto de gasolina já estava longe. Eu me senti na fórmula Indy. Não, não estou brincando. Demais, demais! Era uma sensação muito boa, a adrenalina estava a mil. Eu era o próprio poscher, meu pé estava colado no acelerador, não tinha vontade nenhuma de diminuir a velocidade. Naquele momento, sentia-me parte dele, uma engrenagem qualquer, talvez sua alma...
O motor roncava baixinho, ronronava. Rapidinho o ponteiro chegou aos 200 quilômetros e daí até 260 foi uma questão de segundos. Só me lembro de olhar o ponteiro colando, depois, mais nada, só um forte esbarrão no peito e um gosto quente na boca. Rápido, muito rápido, tudo escureceu. Depois, muito frio, um frio de arrebentar tomou conta de tudo. Um breu gelado... Parecia que estava dentro de uma gelatina negra e sufocante. Não conseguia mover-me, nada, nem um músculo, nem os olhos. Saca ficção cientifica? Aquele filme em que o cara fica girando dentro de uma cápsula e todo mundo olhando do lado de fora para ele e ele totalmente paralisado? Era como se eu estivesse ali girando naquela coisa e, de repente... Apareço aqui.
Estou em dúvida se morri ou se estou dormindo preso entre as ferragens. Já sei, será que estou em coma em algum hospital do governo? Puta que pariu! Que merda! Se estou mesmo em algum hospital do governo, merda grande ou coisa parecida, irei me estrepar de qualquer jeito.
E, de repente, foi deitando no chão como se, depois do esforço de tanto falar, estivesse muito cansado.
LEONARDO: Estou me sentindo muito cansado.
No alto da caverna surge uma fina luz dourada como se raios de Sol penetrassem por uma pequena abertura e distribuísse sua luz até onde se encontra o trio. A iluminação inesperada provoca uma melhor visibilidade no local. Julio vai até onde os raios tocam o chão, coloca o rosto nos reflexos dos raios e de olhos fechados, ironicamente, se dirige a Leonardo.
JÚLIO: Morte chique, não? Num poscher... Quer mais o que? O bom é que você ainda lembra. Acho que, realmente, esse sonho é seu. Ainda está preso nas ferragens e quer nos prender nessa viagem. Egoísta, como todo poderoso. Brincadeira...! Eu não sei o que aconteceu comigo, fui deitar com muita dor na nuca, tomei alguns analgésicos e acho que bebi uns drinques a mais, mas isso já é de costume. Agora estou aqui, estava pensando que era um sonho, mas está tudo tão real, talvez seja eu quem, ainda dormindo, tenha morrido.
RIANA: E quando acordar? Morta, já que viva, aparentemente, não estou. Ainda está aqui dentro (aponta para a cabeça) a imagem bem fresquinha do meu salto para o infinito. Pulei... Foi um salto único, sem culpas, do vigésimo oitavo andar. Depressão no grau seis após um coquetel de rivotril, lexotam, vodca, café, maconha, haxixe e mais um porrilhão de coisas somado a essa vida de merda. Perfeito, eu já estava mesmo no meio do caminho para o inferno! Agora tanto faz. Vocês se fuderam ao invadirem o meu pesadelo. (Gargalha sozinha e em voz alta convulsionando o próprio corpo num ataque de histeria, assustando os companheiros de infortúnio)
Um silêncio se abate sobre o ambiente e apenas o som das remadas nas águas do rio sulfuroso invadiam o lugar, porém esse barco ou sabe-se lá o que, nunca chegava.
LEONARDO: Já sei! Esse rio é de lavas e não tem nada de Caronte nem Aqueronte... Isso é um vulcão.

RIANA: Então a qualquer momento “bumm” iremos pelos ares juntamente com uma terrível erupção.
JÚLIO: É possível, mas isso não explica como chegamos aqui e por que estamos vivendo essa situação!
LEONARDO: Sequestro. É isso, claro! Vocês estão de conluio nessa farsa. Não passam de sequestradores que me pegaram dentro do carro depois do acidente e estão tentando extorquir minha família.
RIANA: Ta viajando, o moleque!
LEONARDO: Porque não? Só pode ser. Vocês estão armando tudo isso para me enlouquecer. Confessem! E quase conseguiram. Eu sei que é porque tenho grana, isso é normal! Como demorou a cair a ficha! Digam quanto querem e vamos acabar logo com isso.
JÚLIO: Enlouqueceu de vez. Ei cara pálida, acorda! Qual idiota colocaria sua vítima dentro de um vulcão, ou que merda seja esse lugar, e ficaria do lado, sofrendo nesse calor insano? Imbecil e idiota!
RIANA: Todo homossexual é egocêntrico. Eu tenho raiva da maioria deles. (Afasta-se de Leonardo) Meu mundo por um cigarro.
LEONARDO: Preconceito...? Você não é nenhum exemplo de castidade.
RIANA: (Falando para si) Se acham injustiçados por tudo, dizem que são minorias. Como? Se, hoje em dia, em cada casa tem um gay ou uma sapatão. Isso é normal e para mim está tudo bem, diversidade geral. (Risos) O que me incomoda é que se sentem donos dos lugares.
JÚLIO: Como assim? Não entendi.
LEONARDO: (Irritado) Somos segregados aos guetos como vocês aos puteiros!
RIANA: Mentira grande. Vocês chegam de mansinho e tomam conta do lugar e do que estiver ao redor. O povo se afasta porque quando vocês chegam a putaria impera.
LEONARDO: isso e puro despeito, inveja e preconceito.
RIANA: Quer ver? Preconceito? Vou lhe provar. Desde criança que moro na Avenida da Consolação quase esquina com a Paulista. Sempre aos domingos costumo caminhar com minha mãe até o museu do MASP para ver aquela feirinha e almoçar, religiosamente, um delicioso yakissoba feito por um japa estrábico que tem uma barraca em frente ao parque Trianon; depois de almoçarmos sentamos nos bancos de madeira e ficamos observando os pássaros e a natureza... Assim passávamos nossos domingos antes da galera gay resolver transformar aquele santuário em centro de pegação.

Praticamente fomos expulsas quando, em certo domingo, flagramos um casal de rapazes se pegando dentro do banheiro feminino. Fomos reclamar ao vigia - uma bicha velha que vivia dormindo no banco ao lado do banheiro – e ele surtou na nossa frente. Aos brados ficava perguntando com desdém quem éramos e o que estávamos fazendo naquele parque que pertencia a sua comunidade gay. Dizia ele que estávamos invadindo o espaço com o nosso preconceito; e não era nada disso, nós só queríamos usar o banheiro feminino. Júlio, você acredita que todo o povo da feirinha apoiou a bichona histérica? Foi um horror, fomos vaiadas; voltamos para casa correndo, de cabeças baixas e mortas de vergonha; perdi até a vontade de fazer xixi.
Um uivo ecoou no ar. Riana encolheu-se e agarrou-se ao braço de Júlio. Leonardo correu para perto dos dois e conteve-se, mantendo certa distância. A luz do farol chegou até eles e demorou alguns segundos como se alguém tivesse focalizando-os.
RIANA: Acho que chegou nossa hora.  (Cruzou os braços, resignada)
JÚLIO: Que venha logo o nosso inferno. Estou cheio disso.
LEONARDO: Porque não o paraíso? (Com ironia)
Silencio novamente. A luz do farol desaparece e reaparece a luz dourada do alto da caverna.
RIANA: Você precisa acreditar no Céu para que ele possa existir.
JÚLIO: Você não tem religião, Riana?
RIANA: Tinha três, mas dispensei uma por uma a cada vez que abortava. Agora sou mais feliz, sem culpas.
LEONARDO: Feliz? Como feliz? Você nem sabe onde está! Não sabe se está viva ou morta e se diz feliz? (Rir nervoso)
JÚLIO: Ainda acho que estou sonhando! (Melancólico)
Assim como surgiram, as luzes solares começam a desaparecer. A caverna volta a ficar iluminada apenas pelo vermelho borbulhante do rio de fogo e lava. O silencio volta a imperar no ambiente. Depois de um longo tempo que pareceram horas, alguém resolve falar.
RIANA: Decididamente, alguém está no sonho de alguém ou então fazemos parte de um sonho de uma quarta pessoa.
JÚLIO: Agora você viajou mesmo.
LEONARDO: Então não existimos? Somos produtos de um sonho de outrem?  Você está louca.
RIANA: Pesadelo. É isso, um horrível pesadelo. Estou começando a me irritar com isso. (Nervosa, vai até a margem. Apanha umas pedras e, tentando atingir a outra margem, joga-as, violentamente, sobre o rio e em seguida grita) Caronte, velho filho da puta, ou quem quer que você seja, venha logo. Acabe com essa angústia, vamos, mostre a sua cara, demônio dos infernos.
JÚLIO: (Alheio ao histerismo de Riana, fala-lhe calmamente) Talvez seja você quem está em coma em algum hospital. Afinal, você falou que havia pulado do edifício. É isso! (Exultante) Nós somos seu pesadelo.
LEONARDO: Quanta bobagem! Eu sinto que existe algo além daquela margem. (Apontando para além das duas torres de pedras)
RIANA: Vai lá descobrir! Eu não me sinto bem, sinto um vazio gigantesco, uma angústia sufocante, chega a doer na alma, uma vontade enorme de chorar. (Desiste de jogar pedras e senta-se no chão)
LEONARDO:  Calma, você acha que adianta chorar? Não vai mudar em nada nossa situação.
JÚLIO: É tudo muito esquisito. Esse rio vermelho é quente demais, não da para passar... É muito quente e sulfuroso. Acho que é acido puro.
RIANA: Deve ser o rio que nos levará direto ao inferno. Só nós falta aparecer o tal barqueiro da morte.
JÚLIO: Caronte... É esse o seu nome. O rio é o Aqueronte. E talvez, esse ruído de remadas pode ser ele com seu barco.
RIANA: Então, estamos no Inferno de Dante.
LEONARDO: Nossa! Uma puta culta.
JÚLIO: Ou uma culta puta?
RIANA: A ordem da frase não altera o mau juízo.
JÚLIO: Desculpe-me.
RIANA: Já estou acostumada a ser tratada assim. Afinal, ser puta foi, talvez, uma escolha minha.
Novamente a luz branca vinda de um farol no fundo da caverna, ilumina rapidamente o ambiente, depois circula todo o lugar e some. O barulho das remadas fica mais forte. Ouve-se, longinquamente, um uivo de um cão reverberando pelas paredes da caverna.

RIANA: Meu Deus! É Cérbero! (Arrepia-se)

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