sexta-feira, 13 de abril de 2012


A Barca de Caronte – 4º Capítulo

NO CAPÍTULO ANTERIOR RIANA DESAGUA UM MAR DE LAMENTAÇÕES E JÚLIO, AGORA, RESOLVE CONTAR SUAS EXPERIÊNCIAS COM O SANTO DAIME!
                                       

4° CAPÍTULO

JÚLIO: Depois de sairmos do centro de Rio Branco, andamos, mais ou menos, uma hora mata adentro. A Malu já estava preocupada com assaltos ou coisa que o valha... neuroses de gente de cidade grande.

RIANA: Eu estaria morta de medo. Mata fechada, escuridão, selva... Morro de medo de cobras.

LEONARDO: É uma parada meio sinistra, mas continue.

JÚLIO: Bem, depois de muito tempo só vendo mata e alguns solitários postes de luzes, surge uma clareira... Gente, esqueci de dizer que era noite e havia uma enorme lua cheia no céu.

LEONARDO: Que mágico!

RIANA: Adianta, homem!

JÚLIO: Apareceu na nossa frente um grande muro branco de uns dois metros de altura com mais de duzentos de extensão. Parecia muro de cemitério. Demos a volta - porque o muro circulava o lugar - e encontramos um largo portão de madeira que estava aberto e bem iluminado; havia vários postes com luzes acesas e várias pessoas vestidas de branco entrando pelo portão; as mulheres vestiam-se com blusas e saias brancas ou vestidos compridos - também brancos - e com uma faixa verde na cintura; outras a usavam no pescoço, talvez imitando uma echarpe; algumas ostentavam na cabeça umas coroas de arames e pedras falsas, tipo aquelas que se usam em épocas de carnaval.

RIANA: Risível, totalmente sem lógica.

JÚLIO: Fomos recebidos na entrada por um amigo do motorista que, segundo o próprio, era parente do mestre Irineu - caboclo que um dia, através de uma visão, aprendeu a preparar a beberagem da consciência. Dizem que, teria sido ele o escolhido para receber a receita na qual estavam os tipos de cipós que encontraria no meio da floresta e a forma correta de como misturar e preparar o chá... coisas do povo da floresta.


LEONARDO: E como é o lugar?

JÚLIO: Bem organizado. O muro branco que cerca o lugar serve para evitar que animais e visitantes indesejáveis o invadam. Existem várias casinhas pequenas e pintadas de branco que são habitadas pelos guardadores do templo. Sim, existe um templo - um grande barracão de madeira com duas fileiras de bancos de madeira separadas; à direita sentam-se as mulheres, eu acho, e a esquerda os homens, ou ao contrário, não lembro. Existe também certa hierarquia, por exemplo, os mais velhos ocupam os primeiros bancos.

Lá na frente tem um altar com a maior misturada de imagens religiosas que já vi na vida: Jesus, Buda, São Jorge, São Sebastião, Iemanjá, entidades da umbanda, caboclos, iaras, entidades do candomblé, fotos de gente famosa, tipo Gandhi, etc. Havia até uma foto de Airton Senna, e a impressão que tive é que todas aquelas imagens conviviam em grande harmonia. Todas as pessoas que ali estavam as reverenciavam com estranhas cantorias.  Como se fossem mantras eles ficavam repetindo tais cantorias até entrarem em transe.

Antes, em uma grande bandeja, foi servido para os fieis o famoso chá do daime. Eram vários copos pequenos feitos de plástico, pareciam aqueles que servem café em escritórios. Neles, havia uma mistura parecida com um suco escuro, meio grosso, e um sabor muito forte de raiz, porém, não me recordo do cheiro. Após beber o chá não senti absolutamente nada. Malu tomou o dela e foi para o meio do povo acompanhar as danças e cantorias. Eu fiquei na dúvida se iria participar ou não.

Alguns minutos depois senti, no estomago, uma fisgada fortíssima que me levou a dobrar o corpo de tanta dor. Depois, uma terrível cólica seguida de uma estranha sensação como se algo vivo percorresse-me por dentro. Era algo esquisitíssimo que fazia um forte barulho dentro da barriga e me deixava meio constrangido, pois eu achava que todo mundo estava ouvindo, mas todos estavam ligados nas cantorias. Do meu lado esquerdo o motorista que havia nos levado até aquele lugar, apontou, em silencio, um corredor que dava para o final do templo. Caminhei sem nem mesmo saber o motivo. O final do corredor ficava por trás do eclético altar e chegando lá pude perceber que era o local onde ficavam os banheiros – haviam uns quatro. Automaticamente fui me dirigindo para um deles. A cólica aumentava a medida que eu me aproximava, só deu tempo de levantar a tampa do vaso e sentar. Parecia que eu estava me esvaziando por inteiro. Achei que o chá havia me causado uma infecção intestinal.

Após um bom tempo, que me pareceram horas, consegui terminar o serviço. Estava me sentindo vazio como se todos os meus órgãos tivessem saído de dentro de mim, rim, fígado, coração, etc. Sentia minha respiração de uma forma diferente, cadenciada, parecia que ela era algo consistente, como se tivesse forma. Eu sentia, literalmente, o ar passar pelo nariz e chegar aos pulmões. Era algo prazeroso e comecei a gostar daquele jeito de respirar. Fechei os olhos e vi, diante de mim, uma enorme serpente prateada e com riscas verdes; na cabeça, encontrava-se um enorme escorpião negro apontando o ferrão em minha direção, porém, parecia que ambos sorriam. Eu sorri também para eles e, de repente, fui interrompido por alguém batendo na porta do banheiro: era o motorista querendo saber se eu estava legal. Respondi que sim. Abri os olhos e, naquele instante, a cobra e seu escorpião negro sumiu.

Vesti as calças e levantei-me. Quando sai o rapaz falou que estava preocupado, pois já haviam passados uns quarenta minutos em que eu estava no banheiro. Comentei da cólica e ele falou que era normal. Para alguns aquilo se chamava purificação, para outros, uma surra do Daime. Rimos e caminhamos de volta ao salão onde vi a minha colega dançando muito animada com as crianças.

Quando olhei para as luzes do templo, enxerguei, no ar, fantásticos feixes de luzes que giravam e se fragmentavam. Era o chá fazendo efeito. Senti que precisava sair do salão. Andei até o centro do lugar onde havia um coreto, daqueles que existem em cidades de interior. Era todo branco e o interessante é que o telhado era meio cônico; no final, lembrando aquela imagem conhecida da Arca de Noé - o personagem bíblico - havia um barco de madeira de aproximadamente um metro. Eu só não conseguia entender a razão daquela arca em plena selva amazônica.

Por curiosidade, continuei andando pelo lugar até que encontrei uma pedra negra de aproximadamente dois metros de altura. Ela ficava próxima a saída do templo. Estava me sentindo muito cansado e então resolvi sentar no chão e me escorar nessa pedra. Foi aí que o bicho pegou!

DIANA: Como assim? Continue, estou curiosíssima.

LEONARDO: Eu estou babando pelo final disso tudo.

JÚLIO: Bem, ao me escorar na pedra achei-a muito quente, mas pensei: ela deve ter ficado exposta ao sol o dia inteiro, portanto é normal que esteja quente. Porém, o calor da pedra foi penetrando pelas minhas costas, parecia que eu iria pegar fogo, tentei levantar-me, mas minhas pernas não obedeciam, uma estranha corrente elétrica começou a invadir meu corpo. Essa energia estava saindo da pedra, e então comecei a me apavorar; achei que a pedra estava me sugando, ouvi o meu coração disparando e... comecei a ouvir algo que parecia vir de dentro da pedra: era um som semelhante a um pulsar de um coração - Tum Tum Tum. Gente, eu achei que estava enlouquecendo. A pedra tinha adquirido vida e estava se comunicando comigo... Eu estava apavorado, tentando a todo o momento ficar de pé, mas nada de minhas pernas obedecerem. Elas estavam unidas, como se fossem coladas em um corpo de uma serpente.

Senti que a pedra estava sugando minha energia e me transformando em uma cobra. Tentei gritar por socorro, mas não consegui articular nenhum som. Então, tive a ideia de jogar meu pensamento até a Malu para que ela viesse me socorrer. Foi aí que algo totalmente irracional aconteceu: consegui sair do meu corpo. Foi muito louco, gente! Eu me vi saindo do meu corpo. Fiquei de frente pra mim mesmo e, diante da pedra, eu era pura energia, meio fantasma, algo assim meio amarelo clarinho, transparente, sabem? Porém, eu conseguia caminhar normal. Sai rapidamente até a Malu e fui passando pelas pessoas... Eu atravessava seus corpos, sentia suas vísceras, seus corações batendo, suas veias pulsando e sentindo um cheiro delicioso no ar, contudo eu não conseguia identificar aquela fragrância. Tudo era muito prazeroso. Até que, finalmente, encontrei a Malu. Ela olhou-me nos olhos... tentei falar algo, mas não consegui, fui puxado de uma forma violenta de volta ao meu corpo.


Segundos depois a Malu chegou até onde eu estava, pegou na minha mão, chamou-me e eu saí do transe. Ela disse que me viu quando cheguei perto dela em forma de energia. Foi muito louco! Depois, gradativamente, eu e a Malu fomos voltando ao normal. O motorista, enquanto nos levava de volta para o hotel em Rio Branco, comentou que essas viagens fora do corpo eram comuns e que eu deveria tirar algo interessante daquilo tudo. Afinal, nada acontece por acaso.

LEONARDO: Fantástico, gostaria muito de passar por isso.

RIANA: Muito fantasioso. Parece coisa de espiritismo, Chico Xavier, essas bobagens que existem por aí.

LEONARDO: Você não acredita em nada?


Continua...

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