A decoração da sala
é motivada pelos anos oitenta, há um sofá de três lugares vermelho coberto por
uma manta com fuxicos azuis e vermelhos, um tapete vermelho e dourado com
desenhos bordados de “arabescos” árabes tomando conta da sala, dezenas de
almofadas de cetim coloridas ficam espalhadas sobre o mesmo para que as visitas
se sintam mais a vontade, acredita o artista. Na parede da direita, acima de um
descascado e sempre úmido pote de barro de onde sobressai um verdejante pé de comigo-ninguém-pode, ainda existe uma
foto emoldurada do time do America de 2009, diante do sofá há um móvel conhecido
por rack onde se encontra uma TV de plasma de 40 polegadas, um aparelho portátil
de som, além de centenas de DVDs de CDs musicais organizados por ordem
alfabética, vários portas-incenso, alguns com varinhas sempre acesas perfumando
o lugar.
O rapaz termina de falar e segue em direção ao
corredor levando nas mãos o prato de prata da gata egípcia para colocar comida e
a cesta de vime. Nefertiti continua ereta sobre a almofada com o olhar enviesado
para o gato Mano, o que separa o olhar da gata é apenas um vaso solitário com
uma rosa amarela colhida no jardim da frente da casa de Clenor. O vaso faz parte
da decoração da sala, assim como uma estátua do São Jorge que ficam sobre um
aparador, que foi confeccionado artesanalmente com uma pedra de mármore de
aproximadamente um metro por quinze centímetros colocados sobre duas colunas de
tijolos brancos aparentes e pintados com cal branca, criação do próprio dono da
casa.
Na parede branca
acima do aparador tem um quadro em sanduiche de vidro com quase um metro de
altura de uma reprodução tradicional de Iemanjá saindo das águas do mar com um
manto azul claro, decorado com dezenas de estrelas e com uma coroa na cabeça.
Depois da paixão por teatro e pelos seus gatos, são as roseiras e os girassóis
que o rapaz mais admira, por essa razão, cultiva um modesto jardim de três
metros quadrados com vários tipos de roseiras, vermelhas, amarelas, rosas,
mescladas, príncipes negros, brancas, paulistas, rosas meninas, etc. que
perfumam e decoram sua casa durante todo o ano, lá é um lugar terminantemente
proibido para os bichanos e eles respeitam muito bem essa regra, nunca são
vistos entre as roseiras, os felinos tem uma verdadeira aversão ao seu jardim,
tudo tem a ver com a chinelada que o gato Gleydson levou nos quadris além do
grito do dono, quando o bichano resolveu fazer coco ao lado de um canteiro de
girassóis cuidadosamente cultivados debaixo do parapeito da janela, foi um deus-nos-acuda, todos os gatos fugiram
desesperadamente pra cima da enorme mangueira que ocupa boa parte do seu
quintal, a partir desse dia nunca mais Clenor viu algum gato no seu jardim.
Inexplicavelmente, o gato punido deve ter repassado o recado para os outros
colegas.
No parapeito da
janela ficam dois vasinhos de cravos, um de cravos vermelhos e outros de cravos
brancos. A casa fica num bairro bucólico
da zona norte de Natal conhecido por Solidade I. Tem como vizinho do lado direito de sua casa
um terreno baldio que a criançada usa como campo de futebol, em frente ao mesmo
vem a tão movimentada avenida litorânea que separa o bairro onde mora dos
mangues do Potengy, rio que banha a cidade potiguar.
A vizinha da
esquerda é a implicante Dona Ivonete, uma obesa senhora de idade, grisalha,
viúva e pensionista do INSS que passa o dia inteiro importunando a vizinhança
vendendo refratários da “Tuperware” e aproveitando-se da oportunidade para se
manter informada da vida dos vizinhos e do bairro, sendo Clenor o alvo predileto
de suas fofocas. A sua implicância em relação ao vizinho é explicada pelo fato
que ela nunca conseguiu colocar os pés dentro da casa dele.
Clenor que vive da
arte do teatro há mais de trinta anos, já conviveu com todos os tipos de
personagens, egos inflados, futricas de atores, iluminadores e toda a classe
artística que ele alcunha de “serpentário
de Ionesco”, jamais vai dar margem para velha da Dona Ivonete se criar, diz
ele pra si mesmo.
O rapaz inclusive já
mandou instalar envolta de toda a sua residência uma cerca de arame farpado
semelhante as usadas em penitenciárias, para acabar de vez com as queixas e
ameaças da vizinha, que frequentemente reclama dos gatos quando pulam no seu
quintal para fazer coco. Apenas um galho da mangueira ultrapassa a cerca farpada
sobre o muro em direção à casa da megera, mas Clenor acredita que nesse fim de
semana vai dar uma podada na árvore para evitar maiores problemas.
A residência do
artista tem três quartos, um está sempre fechado e é decorado todo em azul,
cortininhas e cama de casal com dossel também azuis, além de lençóis e fronhas
azuladas predominam o ambiente, na parede da direita do quarto que também é toda
pintada de azul, tem um quadro antigo emoldurado com a paisagem da famosa praia
de Genipabu com o bar 21 ao fundo das dunas douradas e três rapazes sentados
vestidos apenas de minúsculas e semelhantes sungas pretas sobre uma jangada
olhando propositalmente para a câmera e um deles o mais moreno e sorridente
segura um graveto e o aponta para a areia da praia onde está escrito: “Amigos para sempre Amaury, Clenor e
Gleydson - 1995”. O fotógrafo conseguiu pegar a luminosidade do sol dourando
as dunas. No quarto, ainda há um enorme guarda-roupa que domina toda uma parede
à esquerda da cama.
Clenor que nesse momento encontra-se no terceiro quarto, onde existe uma
placa de madeira na porta com os dizeres pintados em letras garrafais “Residencial gatos felizes”, é cercado
por dezenas de almofadas coloridas espalhadas por todo o chão, lá seus bichanos
dormem quando querem, além de um espaço cheio de pratos fundos próprios para
alimentação dos felinos, há também uma estante com vários refratários de
plásticos de tamanhos distintos e adesivados com “comida para gatos” hermeticamente
fechados.
Uma janela é mantida
aberta para o quintal protegida por uma grade de ferro com hastes separadas em
pequenos espaços onde apenas os gatos conseguem atravessar quando vão brincar ou
fazer o que bem entenderem no quintal. Muitos deles passam os dias nos galhos
baixos das mangueira e só entram no quarto residencial para comer ou dormir.
Existe ainda um
segundo quarto o qual Clenor usa para guardar o seu material de trabalho como
cenários, fantasias, acessórios, etc. lá tem um pequeno atelier com máquinas de
costuras. Recentemente colocou um computador para manter-se antenado com o mundo
virtual, já tem até um perfil no Orkut e também no facebook, vive postando fotos
dos gatos e participa de várias comunidades que se referem aos felinos.
O barulho de algo
como louça caindo e quebrando assustou Clenor que rapidamente largou um prato de
prata com comida no chão do quarto e dirigiu-se rapidamente para a sala, onde
supostamente teria vindo o barulho. Lá chegando, constatou que no chão
encontrava-se a estátua de São Jorge partida em vários pedaços e o gato Mano
choramingando ao lado da cabeça do cavalo que estava no pé do sofá. Alguns gatos
acompanharam o dono até a sala, a gata Delma passava entre as pernas de Clenor
puxava a perna da bermuda com os dentes e dava longos miados para cima do
aparador onde estava imóvel, Nefertiti, a gata egípcia, parecendo alheia a tudo.
Clenor Olhou para o chão e soltou um palavrão:
- Merda, era só o que me faltava!
Foi você Mano quem fez essa sujeira? Eu sabia que um dia isso iria terminar
assim. Meu São Jorge, presente da Fafá de Belém a minha diva paraense! Falou
para os gatos que o cercavam.
Uma vez em um show
nos anos noventa lá no restaurante Recanto do Garcia em Pium, Clenor invadiu o
camarim da musa todo travestido da própria, que por sinal adorou a homenagem.
Ela ficou muito agradecida e perguntou o que poderia fazer por ele, lembrava
desse episódio enquanto juntava os pedaços da estátua. Ele vasculhou o camarim
da estrela com o olhar e logo mirou a estatueta de São Jorge, não teve dúvidas,
era isso o que ele queria como recordação daquela inusitada noite e sem hesitar,
perguntei se ela poderia me dar.
E não é que a Fafá
de Belém deu a imagem do seu santo protetor e nem pestanejou, todo o ritual de
doação foi acompanhado pela tão tradicional gargalhada da cantora. Foi um luxo
aquela noite! Sempre enfatiza Clenor quando conta essa historia.
- Vem aqui Mano, quero ver se tu
está machucado! Pega o gato e vê que o focinho do mesmo está arranhado, em
seguida olha para Nefertiti e diz:
- Será? Não, não acredito! Uma gata
tão linda e delicada não iria fazer uma coisa dessa.
A gata olhou para o
novo dono e mudou a posição, baixou o focinho sobre as duas patinhas dianteiras
e lançou um olhar que enterneceu o artista que soltou um:
- Que coisa mais linda, meu Deus!
Esse seu olhar Nefertiti me faz lembrar alguém, mas quem será? Colocou o gato
Mano no colo e dirigiu-se ao banheiro.
- Vamos xaninho que painho vai
colocar um mertiolate nesse ferimento. Deve ter se ferido com os cacos da
estátua, depois eu junto tudo e tento remendar com cola, aí você já terá um novo
São Jorge, ok? Quando olhou de relance para Nefertiti ela já havia retornado a
sua posição habitual, sentada sobre as patas traseiras e com as patas dianteiras
erguidas retas, feito seu pescoço, parecendo uma estátua egípcia.
Clenor achou que
havia visto pêlos negros nas unhas da gata, mas ela como que percebendo o olhar
do dono, recolheu as unhas de imediato escondendo-as para dentro dos dedos como
fazem os felinos.
- Bobagem, ela não faria um coisa
assim! Foi andando para o banheiro levando o gato preto Mano, sendo seguido
pelos outros.
Após colocar
mertiolate soltou o animal que se vendo livre correu para o quarto onde ficavam
os outros felinos e deitou-se ao lado do gato velho Jesiel.
Misteriosamente os
gatos se reuniram e foram para junto do seu dono, todos ronronavam e miavam
baixinho. Clenor achou engraçado a ação de cumplicidade entre eles, mas, de
repente o telefone celular toca no rack da sala, desesperadamente Clenor corre
pra atender:
- Sim? (Ele nunca falava alô)
Do outro lado da linha uma voz
feminina falou:
- Hare Hare!
Clenor Respondeu reconhecendo sua
amiga Angélica:
- Hare Krisnha Angélica, está no
aeroporto?
- Sim! Mas tenho algo para contar
Clenor, se não, não viajo de consciência limpa. Responde Angélica ao
amigo.
- É o quê, amiga? Pergunta
Clenor.
- Bem amigo, esqueci de lhe falar
que a gata Nefertiti tem três defeitos terríveis.
- É? Alguma doença grave? Estranhou
Clenor.
- Nada disso amigo, ela é
profundamente excêntrica, instável e egoísta.
- Bem, nada que nós também não
tenhamos um pouco, não é Angélica? Ponderou Clenor.
- Não querido, é bem mais sério,
você se lembra do meu gato de raça angorá chamado “Sorriso de Alice”? Ela tanto implicou com ele que o bichano
sumiu, agora imagine como pode um gato sumir de uma cobertura de um edifício de
trinta e seis andares? Gugu diz que ele não aguentou a pressão de Nefertiti e
suicidou-se pulando do prédio. Eu não sei, procurei por todos os vizinhos,
espalhei cartazes nos postes oferecendo recompensas e até agora, nada! E o mais
estranho Clenor é que a gata vivia sentada em sua almofada no canto da minha
sala e não saía de lá para nada, mas, depois do sumiço do Sorriso de Alice ela começou a passear
pela casa inteira como se fosse a única dona. Pronto Clenor....Ufa! Já me sinto
aliviada, contei tudo o que você precisava saber sobre Nefertiti, agora sim,
posso viajar em paz. Tchau Darling,
agora tenho que embarcar, vou pegar o avião, já está na chamada final, Hare,
querido!
- Krisna Hare, louca! Imagine um
gato pular do alto de um prédio por causa de outro, ela deve ter saído e esquecido a
porta de serviço aberta, minha amiga sempre foi muito desligada, tomara que
volte mais iluminada de Lhasa.
Clenor volta para
sala com um tubo de cola e já vai recolhendo os caco do São Jorge para
consertar, percebe que a cabeça do santo não está no pé do sofá onde ele tem
certeza que a viu antes de levar o gato preto ao banheiro. Foi esquadrinhando
toda a sala em busca da cabeça do São Jorge, achou todas as outras peças e foi
colando uma a uma, todavia a estátua continuou incompleta.
Clenor olhou para Nefertiti e falou:
- Mil perdões minha linda, mas estou
desconfiado de algo e quando isso acontece eu enlouqueço! Foi até a gata que
percebendo as intenções de Clenor, foi lentamente abaixando a cabeça, colocando
o focinho sobre suas patas dianteiras e fazendo um olhar desolado.
- Meu Deus do céu, eu só queria me
lembrar com quem você parece quando faz essa cara! Afasta, afasta, me deixa ver
embaixo dessa almofada. A gata tentou golpear o braço de seu dono com suas
unhas, mas Clenor não se fez de rogado.
- Não acredito num negócio desse,
vai tentar me unhar, vadia? Tente pra ver o que acontece contigo, tenta me
arranhar pra ver! Meu Deus, suas unhas estão cheias de pêlos negros e o que é
isso? Embaixo da almofada estava a cabeça da estátua do São Jorge.
- Gente, se eu contar essa estória
lá no Bardallos ninguém vai acreditar! Que sonsa, heim, Nefertiti! Venha aqui!
Pegou a gata pelo meio e levou até onde estavam os outros, colocou ela no chão e
falou:
- Aqui todos são iguais, apesar de
você se julgar mais igual querida, aqui quem manda sou eu! Se você voltar a
aprontar com a gateada quem vai dançar é você, viu neguinha! Arranco essa sua
coleira, lógico, e entrego você para o primeiro mendigo que passar na rua, tá
entendendo? A gata olhou ao redor, mudou o olhar para Clenor e depois saiu
caminhando garbosamente em direção à sala.
Diante do aparador
deu um suave miado, seguido de um salto caindo sobre a almofada prateada e
retornou à posição de sempre. Clenor olhou para ela e completou:
- Estamos conversados? Me ouviu,
pernóstica? Mesmo assim, como és bela minha gata egípcia! Baixa o tom e fala
admirando.
O dia seguinte
amanheceu cinzento com cara de que logo iria chover. Clenor começou logo cedo a
organizar seus figurinos e cenários dentro do carro, iria viajar para Souza na
Paraíba, alguns gatos davam longos miados no quintal,
era sempre assim quando o rapaz precisava viajar.
Convidou mais uma
vez para cuidar de sua gatilha o seu sobrinho Amaury, de vinte e dois anos,
eterno desempregado e que mais uma vez não tinha passado no último vestibular.
Tinha sempre como bordão a desculpa que não tinha chances de competir no
vestibular com os alunos da rede particular. Enrolava sempre sua mãe com esse
papo de malandro para não ter que trabalhar, e ela acreditava.
Clenor achava um
espanto essa história, mas como precisava de alguém para olhar seus gatos quando
viajava, fazia vista grossa à malandragem do sobrinho. E ele como sempre, chegou
logo cedo com a mochila nas costas, mastigando algo e folheando umas apostilas
de química para pegar as chaves da casa e as recomendações de sempre.
O rapaz mal notou a
nova moradora. Pouco se importava com mais um bichano, não gostava nem
desgostava de gatos, achava estranho o tio ter tantos felinos em casa. O que ele
gostava era da grana, recebia para cuidar dos bichos enquanto Clenor se
ausentava. Seu trabalho consistia em alimentar os bichos e fazer as limpezas
necessárias, Amaury as executava num piscar de olhos, na sequência, se via livre
para passar o dia inteiro jogando games no computador e nas redes sociais.
Quando anoitecia, fechava as portas e deixava os gatos sozinhos. Não havia
perigo, a casa era bem cercada de arames farpados.
Clenor despediu-se
dos gatos derramando-se em atenção especial a gata Nefertiti, depois de vários
carinhos e salamaleques acompanhados da frase:
- Meu Deus, como ela é bela! Cada
vez que ele falava a gata dava uma piscadinha nervosa para o rapaz que vibrava.
Enquanto isso no
final do corredor, todos os outros gatos o observavam ronronando nervosos,
alguns chegaram até a se unharem de tão enciumados que estavam pela atenção
exclusiva do seu dono pela gata egípcia. Finalmente o rapaz entrou no carro e
saiu, após fechar o portão caiu o maior pé d´água, trovões estrondavam no ar, os
gatos em silêncio recolheram-se em suas almofadas. Apenas o preto gato Mano
deixou-se ficar enroscado entre as grades de ferro da janela, observando a chuva
que caía e inundava o quintal.
Dois dias depois,
uma segunda-feira com um início de um pôr do sol dourado sobre a cidade das
dunas de Genipabu o artista Clenor chegou a casa, e como de costume, desceu do
carro, se dirigiu ao portão para abri-lo, mas a princípio, não o colocou na
garagem. Uma coruja rasga mortalha
passou sobre sua cabeça e deu um longo piado.
- Sai pra lá demônia! Gritou Clenor
persignando-se.
Assustou-se novamente com a voz
estridente de Dona Ivonete à sua esquerda:
- O senhor já chegou, seu Clenor?
Colocando a velha cara enrugada sobre o próprio portão para a rua.
- Cheguei sim, Dona Ivonete, algum
problema? Arrependeu-se em seguida de
ter feito essa pergunta, porque a velha fofoqueira logo abriu o portão e
falou:
- Ontem à noite deu até polícia
aqui, o senhor sabia?
- Aqui na Zona Norte sempre dá
polícia Dona Ivonete, moro aqui faz dez anos e todos os dias a Zona Norte é
citada nas colunas policiais, dá ibope querida!
- Mas foi na sua casa, seu Clenor,
que a polícia veio ontem! Falou com um prazer articulado a futriqueira da
vizinha.
- Na minha casa? Parou de abrir o
portão na hora e voltou-se para a vizinha e era isso o que ela esperava, então,
foi caminhando em direção ao portão esperando ser convidada para entrar,
percebendo a manobra Clenor colocou-se na frente do mesmo e passou novamente a
chave, fechando-o em seguida.
- Como assim Dona Ivonete, deu
polícia na minha casa? Voltando-se frustrada para frente de sua casa e falando
bem alto chamando a atenção de quem estivesse passando.
- Foi sim, não sei quem deu queixa,
eu não fui, pode ter certeza, mal cuido de mim, cada um vive a vida como quer,
esse é o meu lema e o senhor sabe bem disso!
- Tudo bem Dona Ivonete, eu sei que
a senhora é uma santa, mas o que houve pra polícia bater aqui na minha casa?
- Bem seu Clenor, a sua gateada fez
um barulho do cão ontem à noite, assim que aquele seu sobrinho que não consegue
passar no vestibular saiu, o senhor já pensou em arrumar um trabalho pra ele? Um
rapaz tão novo, né? Já faz parte das estatísticas dos sem-teto ou sem nada, não
é?
- Dona Ivonete, desenrola logo,
deixe que dos meus cuido eu! O que a polícia queria mesmo?
- Bem, alguém deu queixa por causa
do barulho dos gatos que desde após o almoço, quando seu sobrinho saiu e ele
sempre sai logo após o almoço, o senhor sabia? Pois, pelo o que eu sei seu
Clenor ele deveria passar a tarde inteira, não é?
- É, Dona Ivonete! Responde um
impaciente Clenor.
- Eu não quero saber de detalhes,
quero apenas saber o que houve pra polícia ter vindo aqui na minha casa?
- A queixa homem, a queixa...mas
eles não fizeram nada, como sempre, né? Enrolam pro lado, pro outro e vão
simbora, perguntaram se morava alguém na casa, eu falei que o senhor estava
viajando, mas que cuidava muito bem dos gatinhos e que o senhor tinha um
sobrinho que não quer saber de nada, mas que lhe ajudava por dinheiro. Ofereci
até o meu quintal para eles olharem dentro da sua casa, eles entraram, subiram
na minha escada e olharam pro seu quintal! Mas só viram os gatos, disseram que
depois voltariam com um chaveiro para abrir o portão, mas até agora nada, já
pensou se fosse um caso de ladrão ou de vida ou morte? Já estaria saindo um
caixão por essas horas, não acha? Meu Deus, eu fico só me perguntando o porquê
que os pobrezinhos dos bichanos miavam tanto, seu Clenor! O senhor
sabe?
- Obrigado Dona Ivonete pela ajuda,
estou muito cansado da viagem e qualquer coisa se precisar lhe chamo, tá bem?
Muito obrigado.
Dessa vez, Clenor
não abriu o portão da casa para guardar seu carro, como era de costume, não
queria dar o cabimento daquela velha poder entrar em seu lar. Naquele instante,
seu carro foi deixado em segundo plano e só após entender o que realmente teria
ocorrido em sua casa, colocaria seu carro na garagem.
Ao dispensar sua
vizinha, abriu o portão menor e entrou pelo jardim, pelo menos numa primeira
impressão, tudo estava bem. Olhou as roseiras, passou a chave na porta de
entrada e foi brutalmente surpreendido pelo o que presenciou. A sua sala estava
uma tremenda bagunça, seus quadros da Iemanjá e do time do América estavam lado
a lado sobre milhares de cacos de vidros, a estátua do São Jorge jazia aos pés
do aparador espatifada em pedaços, e dessa vez não havia cola super-bonder que desse jeito, seria um
quebra cabeças de dez mil peças para montar. Penas de ganso ainda pairavam no
ar, parecia um gigantesco galinheiro sem galinhas, apenas penas.
Posando sobre o que
restou da sua linda almofada prateada que agora estava reduzida a um pedaço de
tecido esfarrapado sobre o mármore, estava ela, a imponente Nefertiti, dessa
vez, com vários arranhões visíveis no pescoço e bufando enlouquecida para cima,
fazendo com que centenas de pêlos girassem no ar sobre sua cabeça.
- Meu Deus! Passou um furacão por
aqui! Exclamou o artista.
Seus CDs e DVDs estavam espalhados por todos os lados, uma cagada de gato
ainda escorria úmida sobre a tela da TV, enaltecendo ainda mais o clima de
imundícia no local, nem o pé de comigo-ninguém-pode escapou ao
vandalismo, haviam folhas e talos pra todo canto e o odor imperava no ambiente.
Colocou no sofá a
bolsa de couro que sempre carregava e caminhou com as mãos na cabeça até a
cozinha pelo corredor, foi uma odisseia escabrosa enfrentar o trajeto, pois o
caminho estava todo pavimentado de fezes felinas, pelos e diminutas bolinhas de
isopor, que antes enchiam as almofadas.
Chegando a cozinha,
precisou imediatamente tomar um copo d’água para tentar entender o que havia
acontecido. Tentou respirar fundo, mas a tentativa foi logo interrompida pela
nuvem de pêlos de gato que ainda pairavam no ar feito sementes de dentes-de-leão lançadas ao vento. Mais
uma vez, tentou respirar fundo tentando digerir melhor àquela inóspita recepção
e teve um ataque de espirros.
- O que esses gatos fizeram com a
minha casa, meu Deus do céu? Desabafa atormentado.
Para agravar o
desastroso cenário, Clenor ainda deixa cair um copo no chão quando abre a
geladeira, criando um aglutinado de merda, penas, pelos e cacos de vidro,
tornando o episódio que já era angustiante numa situação bizarra e
insuportável.
Dentro da sua
travessa colorex predileta, ainda estava uma colorida salada de cenouras
fatiadas com beterrabas e alface que havia esquecido na mesa antes de viajar, só
que agora, enriquecida com patê de coco de gato.
- Como é que pode uma coisa dessa?
Vou botar agora o autor dessa diabrura na rua, ah se vou! Enfurecido, tirou a
travessa da geladeira e escorou a porta com uma cadeira para sair o mau cheiro.
- Vou ter que lavar tudo! Isso sim,
é que é estar literalmente na merda! Abriu a lixeira e jogou tudo fora, a
salada, a merda e a travessa de colorex.
- Que mais me falta agora? Estranho! Onde estão todos os meus bichanos
que sempre faziam festa quando eu chegava? Dirigiu-se apressadamente para onde
normalmente ficavam seus gatos.
Outra confusão semelhante a da sala o
aguardava, várias almofadas foram transformadas em retalhos esfarrapados, porém,
nada dos gatos. Clenor olhou automaticamente pela janela gradeada, quando viu
todos os seus gatos em cima da mangueira, imediatamente saiu do caos de seu
quarto e logo seguiu em direção à árvore onde estavam seus felídeos, que
inexplicavelmente andavam nervosamente sobre os galhos, pareciam bastante
amedrontados e miavam desordenadamente na mesma sinfonia.
Num dialeto
indecifrável para os homens, mas inteligível para os gatos, Clenor estabelece
uma esquisita comunicação com seus bichanos, como uma espécie de hipnose,
fazendo-os descer um de cada vez, como um verdadeiro encantador de gatos.
Calmamente acompanha
a descida um por um dos gatos, a primeira que desce é a gata Delma que
estranhamente repudia a acolhida de seu dono e mantém distância do rapaz
enquanto mia irritantemente, em seguida, desce o gato Gleydson que ao se
aproximar de Clenor, golpeia sorrateiramente seu braço com suas garras afiadas e
logo volta correndo para o alto da árvore soltando um estridente miado, como se
quisesse repreendê-lo de algo.
- Ei seu fuleira! Por que isso
agora? Quando virou para a direção da cozinha ainda viu os grandes olhos
amendoados de Nefertiti na porta.
- Já entendi tudo, ciumeira bruta e
quem se lasca sou eu! Tenho que resolver isso agora, vou logo telefonar para
Amaury vir me ajudar nessa limpeza. Mas tenho que fazer esses gatos se unirem,
se isso não acontecer, nem sei o que fazer!
- Agora, jogar fora minha gata
egípcia, nunca! Ela é muito linda! Vou tratar dela primeiro e a turma do beco do
mandachuva cuido depois. Fala Clenor convicto da solução.
Duas horas depois
com a ajuda do seu fiel escudeiro Amaury na faxina, sua casa já havia retornado
a aparência de um lar. A essa altura, alguns gatos já tinham descido da árvore,
ficaram lá apenas os gatos Jesiel e o Gleydson, que estavam disputando miados
desfilando enfurecidos nos galhos da mangueira, enquanto no céu surgia a lua
nova que lembrava o sorriso do gato de Alice, por coincidência ou pura ironia do
destino.
O artista foi até o
aparador com uma gaze e um vidro de mertiolate, pegou a gata egípcia no colo e
foi até o sofá, ela deixava-se levar ronronando. Clenor sentou-se e decidiu
tirar a coleira de prata da gata para ver se havia mais algum ferimento, quando
a gata entendeu o movimento do rapaz em tentar abrir o fecho, afiou as unhas e
deu uma unhada segura na mão direita de Clenor, que num súbito reflexo jogou-a
brutalmente no chão e gritou:
- Está louca? A gata lambeu-se e seguiu altiva até o pé do
aparador, deu um salto e voltou para cima do móvel.
- Ora, vá a merda sua louca!
Vociferou o dono da gata.
- Ah, não estou mais aguentando,
estou morto de cansado, acho que vou é dormir e vou agora mesmo! Entrou para o
seu quarto, ligou o aparelho de ar-condicionado, fechou a porta e dormiu de tão
exausto que estava. Na porta do seu quarto, Nefertiti afiava as garras, deixando
ranhuras na madeira branca, ao mesmo tempo, os gatos retornavam para o alto da
mangueira, onde passaram a noite. Na manhã seguinte, Clenor acordou com o
barulho de confusão de miados histéricos.
- Merda! Exclamou o
rapaz.
- Será que cagaram tudo de novo?
Abriu a porta e viu que o gato Mano estava com o focinho cheio de sangue,
cercado pelos gatos Jesiel, Gleydson, Lula e Ricardo, que numa atitude protetora
com as unhas afiadas demonstravam estar prontos para um ataque.
De cima do aparador, Nefertiti dava
terríveis miados e encontrava-se, também, com as garras afiadas. Clenor pegou o
gato preto e viu que faltava um olho no animal.
- Meu Deus, vou já levar você ao
veterinário. Disse Clenor colocando o gato no chão, que na sequência, corre
rapidamente ao banheiro para lavar o rosto e trocar de roupa.
Na porta do quarto,
surgiram ainda mais bichanos que se dispuseram todos ao lado do gato Mano,
miados ameaçadores eram respondidos quase em eco por Nefertiti que permanecia
inerte em cima do trapo que restava da sua almofada real.
Clenor saiu rapidinho do quarto já de roupa trocada, pegou o gato
machucado e seguiu em direção à garagem. Observou que a mancha de sangue seguia
do aparador pelo chão até a porta do seu quarto.
- Agora tenho certeza que foi você
Nefertiti, quando eu voltar do médico com Mano acerto as contas contigo. Conclui
inconformado.
A gata baixou-se sobre suas patas
dianteiras e jogou aquele olhar para o rapaz.
- Já sei prejura com o que tu se
parece! É com o gato de botas do filme do Schrek, é essa cara mesmo que ele faz
quando sacaneia alguém, desgraçada!
- Só pode ter vindo do Egito aquele
famoso ditado “Dar a unhada e esconde a
unha”. Tão linda meu Deus, mas tão ordinária, me deixa voltar do veterinário
que fazemos nosso acerto de contas, vamos aparar nossos bigodes Nefertiti. Disse
Clenor, ainda colocando o gato ferido no interior do seu carro, fechou o portão
e saiu desesperado em busca de socorro para o gato Mano.
Três horas depois e mais pobre em oitocentos reais, valor esse pago pela
consulta e tratamento do gato preto, que já se encontrava dormindo no piso do
carro ainda sob o feito da anestesia e com um tampão no local onde outrora havia
um olho.
Clenor chega
irritadíssimo em casa. Diante do seu portão a mensageira das más noticias Dona
Ivonete já se encontrava com uma vassoura na mão a sua espera, mal o rapaz
desceu do carro com o gato no colo, a velha logo correu ao seu encontro e
falou:
- Tem um gato ou uma gata bem
estranha no galho da mangueira que dá pra minha casa se esgoelando que ninguém
aguenta, vê se dá um jeito seu Clenor, porque tá me deixando louca! Retornando
para casa sem esperar resposta.
- Ainda mais essa! Pensou Clenor sem
responder á vizinha.
Entrou
apressadamente em casa e colocou o gato preto no sofá da sala, olhou para o
aparador e percebeu que estava tudo vazio, inclusive o vasinho solitário estava
no chão aos pedaços, não estava Nefertiti, nem muito menos o resto da almofada.
De onde ele estava, dava para ouvir a miadeira infernal procedente do quintal, o
rapaz voltou para a rua e colocou o carro na garagem, depois se dirigiu até o
quintal onde se deparou com a gata Nefertiti sobre o galho da mangueira que dava
para a casa de Dona Ivonete, prendendo o tecido na pata do que havia sido sua
almofada, enquanto isso, todos os gatos miavam ameaçadores para ela ao pé da
árvore. Alguns gatos estavam com os pêlos todos crispados e afiavam suas garras
na mangueira.
Quando a gata viu
que Clenor estava vindo em sua direção, pegou os trapos da almofada com os
dentes e saltou do galho para o quintal da vizinha. Clenor ouviu o grito
assustado de Dona Ivonete e correu de volta para o portão da frente de sua
residência para ir na casa da vizinha. Os gatos, como que por encanto, pararam
de imediato com os miados.
Quando Clenor chegou ao portão da vizinha,
Dona Ivonete já se encontrava lá apontando para o lado do campo baldio e disse:
- Ela correu pra lá com um molambo
na boca, ela tem um olhar do demônio seu Clenor, se livra dela pelo amor de
Deus! Pela primeira vez Clenor achou que a velha louca tinha razão, pensou o
rapaz enquanto corria até o campo de futebol ao lado.
Quando chegou ao
início do terreno vazio, que servia como campo de futebol para os jovens da
comunidade, viu de uma certa distância, a gata egípcia tentando driblar os
carros e tentado atravessar a avenida litorânea em sentido ao
mangue.
- Nefertiti! Ele
gritou.
Ela atravessou a
pista, virou-se para o rapaz e soltou o tecido da almofada que o vento levou em
direção a um arbusto próximo. Clenor conseguiu chegar até a avenida, a gata deu
um longo miado e se embrenhou mangue adentro. O rapaz foi até o arbusto e
apanhou o resto do tecido da almofada, olhou para o mangue e voltou para casa.
Dona Ivonete do lado de dentro do portão de sua casa, ainda arrisca a frase:
- Ela se foi? Clenor não responde.
- Melhor assim seu Clenor, essa gata
era do mau! Continua Dona Ivonete.
Clenor chega ao portão, olha pra
vizinha e fala:
- Dona Ivonete, vá arrumar uma
lavagem de roupa e me deixe em paz! Grita Clenor impaciente.
O telefone toca na sala. O rapaz
atende e do outro lado da linha ouve uma voz com eco.
- Hare, Hare, amigo!
- Hare Krishna, amiga! Responde
Clenor.
- E então, como está a nossa gata
Nefertiti? Pergunta sua amiga Angélica.
- Darling, a última notícia que
tenho da terceira praga egípcia que você me presenteou, é que ela foi vista, da
ultima vez, lá no cais do porto do canto do mangue, negociando uma coleira de
brilhantes por uma passagem de volta para o Cairo e... Hare Krishna pra você, Angélica!
Enfático e impaciente, Clenor já conformado, desliga o telefone.
No sofá o gato Mano dorme a sono
solto.
Fim
Obra dedicada aos artistas e
amigos Clenor Junior, Angelica Timbó, Gugu de Pium, Landson Morais e Robson
Paiva.
Revisor: Robson
Paiva